Episódio 7
O “Cantinho das Putas Velhas”
À medida que a Revolução dos Cravos avançava, a amizade entre o jovem Bajoulo e a menina Tita dos Pés Sujos parecia cada vez mais madura, profunda e indestrutível. Mas ambos revelaram-se incapazes de fugir ao destino, apesar da pujante herança genética do macho. Era dia de Comissão de Moradores e todas as atenções estavam viradas para o Clube Desportivo de Paço de Arcos. Todas?!! Todas não, pois havia um derby no Real Campo de Vila Fria, propriedade do Abromobatatinha, junto à lixeira. O encontro era de gigantes, os “Burrinhos da Pradaria”, clube centenário da parte de cima da linha iam defrontar o “Estrela Vermelha da Avenida” da parte de baixo da linha.
- Hoje jogamos o ópio do povo, amanhã o novo jogo a pares inventado pela classe trabalhadora, com frigideiras, bola de ténis e rede, - disse o Labumba, apertando a mão ao adversário.
Enquanto isso na Leitaria do Manuel conspirava-se baixinho, à medida que se enfiavam umas bejecas pela goela abaixo ao som do barulho das novas bolas mecânicas da máquina de flippers. Os do Norte davam os últimos retoques nos planos do novo ataque com Litopone, enquanto que os do Sul concluíam os retoques finais da tomada do poder com a “palavra”. A tradição cumpria-se com mais uma primeira parte de um jogo a chegar ao final sem a intervenção externa do apito. Pela milésima vez o Henrique da Rebelva, que iria encarnar anos mais tarde no Chico Marinheiro, tinha atingido a “redline” e queimara as juntas da cabeça, colando-se à sombra do jovem Fininho, que estava impecavelmente vestido com um equipamento preto de ciclista, comprado na “Maria das Biciletas”. O estado de alma do Henrique da Rebelva refletia-se no fumo que lhe saia pelas orelhas e na cor avermelhada que lhe forrava a “fácies”. Estava à beira de um ataque de caspa! Ao longe adolescente Marinheiro, impecavelmente vestido com um equipamento do Sporting, comprado no Cabrita, que incluía meias e chuteiras verdes do Ánhuca, tentava trazer o adversário para a realidade, sabendo de antemão que tal seria impossível, porque uma vez o mal instalado nos genes, não havia nada que conseguisse apagar o tal risco profundo que, em quase todos os jogos desta liga milionária, colocava o Henrique da Rebelva à beira do precipício.
- Não lhe ligues, o Fininho é assim mesmo! - Iria dizer também mais tarde ao seu filho Chico.
Mas nada demovia o colosso de estar colado à sombra do “tio”. O mal dele era ter ido para o curso de Logística de Mulas. Desde esse momento o tio Fininho tornara-se muito exigente com os estudos do Henrique que trocara os livros pelos copos, fazendo-lhe interrogatórios massivos sobre o comportamento da “Carreira para o Pimenta”. Pelo meio ia-lhe agradecendo os golos que teimavam em entrar na baliza da equipa de que o colosso fazia parte, tendo como companheiro o inebriante Milhas, que teimava em dar orientações táticas desde que o apito assinalara o início da partida. E no calor da discussão ninguém se apercebeu da saída intempestiva dum careca de meia-idade, que tinha atingido o prazo de jogabilidade, em virtude de ter sido traído pela “claustrofobia por espaços vastos” que o impedia de respirar, compensando o défice com escarretas fininhas. Pelo meio o Celestino, que encarnaria mais tarde no médico com cabeça de ananás, sobrinho do Chico Sá, do Espalha e do Peidão, interrogava o Pequeno Polegar, de nome de guerra Biblot, sobre os motivos que o levavam a ir sempre disputar as bolas altas nas Grande Áreas. Mas o assunto da jornada era a grandiloquência do Henrique da Rebelva, que teimava em rosnar junto ao adolescente, enchendo-lhe o fatinho de perdigotos, e isso o jogador Fininho não tolerava:
- Não me diriges a palavra com a boca cheia de azeitonas, – indignou-se o jogador com equipamento de ciclista, apontando um indicador ameaçador.
E nisto uma bola tresmalhada passou a rasar a cabeça do Milhas. Tinha sido o Octanas, que iria encarnar décadas depois no Ruben, que ainda não se apercebera que o jogo estava em “pausa”.
Lá em baixo, muito em baixo, o Titó dava uma martelada na mesa para dar inicio a mais uma sessão de povo, muito em voga nestes tempos quentes.
- Recebi uma proposta de um camarada do lado esquerdo da bancada, que propõe retirar o direito de voto aos moradores dos chalés, - gritou o imparcial Bill, aplaudindo a ideia. – Quem vota a favor?
Muitos dedos no ar.
- Quem vota contra?
Muitos dedos no ar.
- A proposta foi aprovada por maioria.
Aplausos de um lado, insultos do outro, um dedo no ar no balcão do meio.
- Tenha a palavra o cidadão Ratinho Blanco.
- Amigo e companheiro Torres Merda ( o Estaline da Avenida), com esta resolução os moradores dos chalés deixam democraticamente de ter direito ao voto?
- Correto e afirmativo!
- Então vai haver aqui uma maioria silenciosa?
- Minoria, quer V.Exa. dizer. Uma minoria de fascistas, que moram em chalés.
- Mas eu também moro num chalé, nas pedreiras. As barracas também são vivendas, que em vez de relva têm couves.
Estava lançado o caos. O agente encoberto do Comandante Guélas, o cabo Ratinho Blanco, lançara a confusão no meio do povo e já ninguém se entendia. O Sul perdera mais uma batalha, desta vez a “Intelectual”. Tentaram contra-atacar com a idade de voto, mas só pioraram a situação.
Em Vila Fria dava-se início à segunda parte do encontro.
O tempo era de mudanças, os jogadores formados na Praia de Carcavelos pelos misteres Choné, que alugava a bola, e C. Gomes, com o esgoto a servir de linha lateral, estavam cada vez mais fortes . E esta característica fazia toda a diferença neste tão popular desporto de “fim-de-semana com autorização escrita das mulheres”. Mas havia alguém que andava com a cabeça à roda por causa dos tenrinhos. Eles tratavam-no com respeito, diziam “sim” aos seus convites para tertúlias em sua casa, onde viam sessões contínuas de filmes de Cabinda:
- Ouviste o eco? - Perguntou o Chico Sá quando a bola bateu em cheio no bumbum do capitão.
Os tenrinhos até o tratavam por “Tio Porão”! Ao aceitar o lanchinho do Capitão Porão, o Chinoca revelava não estar com a lucidez necessária, nem nunca ter ouvido falar da história do “Capuchinho Vermelho”. Foi preciso passar algum tempo, deixar baixar a poeira, ganhar a distância, para que os amigos o confrontassem com a verdade. Este “inocente” convite do militar de abril mudou para sempre a carreira futebolística deste jovem asiático e veio mostrar o fosso que separava aquelas duas gerações de “profissionais” da bola. O jovem não estava habituado a deparar-se sempre com um defesa adversário que protegia a sua área e a bola de costas viradas para ele. E tantas foram as vezes com que se deparou com um “bumbum” a convidá-lo para a luxúria que, tal como a Leonor do poema, acabou por partir-lhe a bilha. Por momentos aqueles dois corpos, um tenrinho e o outro com caruncho, moveram-se, agiram, num único movimento sussurrante, tocando-se levemente no ar, num gesto que se aproximou dos outros coxos, com um virtuosismo técnico tão elaborado, que fez com que ninguém visse que o Milhas tinha tocado com as duas mãos na bola. O reencontro do Chinoca com o Capitão teve uma sensibilidade poética, que levantou a dúvida quando se deu o contacto do corpo rançoso com o solo e dele saiu um grito alucinante com diferentes interpretações:
- Foi um gostinho, – disse o Fininho.
- Deu o berro, – atirou o Chico Sá.
- O Capitão é que se esborrachou, mas o Milhas é que está a delirar, – exclamou o Peidão.
- É falta do velho! – Sentenciou o único jogador lúcido, o Alfredo do Pombalino, sobrepondo-se à decisão do árbitro que estava ao seu lado, a tentar soprar no apito que tinha entupido com um pedaço de tremoço servido pelos representantes do Sul, no intervalo
O caso não era tão simples e natural, tinha agora uma dimensão metafísica. A imagem dum capitão de abril esticadinho no pelado, estilo bacalhau, iria ficar gravada para sempre nas memórias de todos, como um momento único, desarmante. Mas ninguém se apercebera das terríveis consequências, ao nível político, que este espetáculo, simples e natural, iria ter sobre o PREC. Dali para a frente tornaram-se diferentes.
- Celestino, leva-me a casa!
Todos imaginaram a entrada do militar em casa ao colo do preto, tal qual um par de recém-casados. A recusa do contemplado foi imediata e as atenções voltaram-se novamente para o Chinoca, que tentava escapulir-se da zona do acidente.
- Eu vim de mota, – desculpou-se, abrindo os braços.
- O ferido não se importa de ir sentado de lado, muito agarradinho, – esclareceu o Chico Sá.
Quem ajudou o Capitão a instalar-se no Mini e a desenrascar-se a partir daí foi o Choné, um jogador com uma perna-de-pau e uma franja que fazia as delícias de todas as fêmeas da Costa do Estoril. Quanto ao capitão, não teve outro remédio senão pendurar as chuteiras durante umas semanas, junto às recordações de África, as caveiras de antílopes e as cabeças em pau-preto, com as cuecas do pelotão! O Norte do Comandante Guélas saia deste jogo com uma estrondosa vitória sobre o Sul vermelho. A notícia caiu que nem uma bomba no “Manuel da Leitaria”. A zona dos flippers comemorou, a zona da bisca lambida chorou. O agente duplo Pierre Pomme-de-Terre deu a notícia aos homens do Coreto, que já estavam de rastos com os acontecimentos no Pavilhão do “Jota Pimenta”.
- Os fascistas não podem ganhar a guerra, é injusto meu Deus, - gritou o Balacó pondo-se de joelhos junto a uma virgem meteorológica com uma vela acesa, para lhe manter em permanência a cor vermelha.