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República Independente do Alto de Paço de Arcos

Toda a zona ocidental da Península Ibérica está ocupada pelos portugueses…toda? Não! Uma vila habitada por irredutíveis paçoarcoenses conseguiu a sua independência 19 meses depois do 25 de abril de 1974!

Toda a zona ocidental da Península Ibérica está ocupada pelos portugueses…toda? Não! Uma vila habitada por irredutíveis paçoarcoenses conseguiu a sua independência 19 meses depois do 25 de abril de 1974!

República Independente do Alto de Paço de Arcos

15
Ago17

1ª Temporada - A Vitória Final (16)


Comandante Guélas

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Episódio 16


A Vitória Final


No topo do depósito de água do Alto da Loba a personagem fluida, de contornos indefinidos, em mutação contínua e receptivo a todas as sensações, que dava pelo nome de Comandante Guélas, declarou Paço de Arcos como a única região da Costa do Estoril com um Centro, o café do senhor Manuel da Leitaria, e um fundamento, a “União Mística”, enquanto bebia um Pirolito traçado, com abafador, e olhava para o mar. Atrás de si estava o Craveiro Lopes num violento solilóquio. O nascimento da República Independente do Alto de Paço de Arcos , agora com caráter oficial, e dona dos limites geográficos da vila, representava a fusão entre o real e o sonho. Com medo que as tropas do Comandante Guélas conquistassem todo o país, o Conselho da Revolução aceitou a independência da vila, com a condição de não dizerem nada a ninguém. O acordo foi assinado com pompa e circunstância no meio de furtos sem grande significado, principalmente durante as trocas feitas à pressa das foices e martelos de ouro por cruzes de prata, mais condizentes com a situação. A maior parte destes objectos foi parar aos bolsos do Alice, o precursor do Casal Ventoso. Não muito longe dali, o agora Ministro dos Desportos e Finanças, o Engenheiro Anão-de-Suspensórios, transformou a sede do Clube de Futebol em ministério, colocando uma estátua de Aquiles na secretária, e declarando o Futebol P.A. como a única equipa oficial, e nomeando logo ali os fundadores: Choné, o dono da bola, Miguel Presidente, o angariador e o Capitão Porão, responsável pelas camadas jovens. O movimento de oscilação de um corpo a tentar recuperar o equilíbrio chamou à atenção do povo, que viu o seu herói Craveiro Lopes, Comandante em Chefe dos Aliados que desembarcaram na Praia Velha, num movimento que denunciava o esforço de alguém que procurava um corrimão ao qual se segurar antes de iniciar a descida. Encontrou o Comandante Guélas. A queda do líder sobre a multidão fez um som cheio, molhado, mostrando que tinha a moralidade precisa para o lugar. O “Voo da Águia”, como ficou conhecida esta cena, passou a fazer parte da mitologia, da arte e da literatura de Paço de Arcos, o único sítio na Terra com um líder capaz de voar. As tendências camaleónicas do senhor Pierre-Pomme-de-Terre acentuaram-se à medida que os lugares no novo governo iam sendo distribuídos. A “Revolução do Comandante Guélas”, nome oficial dado a esta mudança de regime, foi um acontecimento único, dificilmente repetível. Foi a “revolta das palavras”, com as quais o Comandante Guélas mudou a vida de todos, aumentando-lhes a potência. O Ministro da Presidência, o Engenheiro Craveiro Lopes, fez uma bela secretária com umas madeiras retiradas do curral da mula do Manelinho da Carroça, e espetou-lhe ao centro uma estátua de Ulisses. No ar havia uma certa dose de amor, que se fundia a uma notável habilidade no manuseio de cervejas, dando lugar à aliança entre a paixão e o prazer. Devido a isto a Tita-dos-Pés-Sujos foi eleita a mais bela princesa da Terrugem, no momento em que o Zé do Fotógrafo lhe tirou uma fotografia quando ela, às cavalitas do seu Bajoulo, empunhava uma bandeira do Benfica. Para os finalistas da 4ª classe esta ficou a imagem-ícone do novembro de 75. Ele era despachado e direto, ela mais introspectiva e cheirava a marisco.


Placa comemorativa da Revolução à entrada da Terrugem

 

“Aqui posto de comando do Movimento do Comandante Guélas. Apelamos a todos os paçoarquianos para saírem das suas casas e barracas, trazerem as bóias e os repimpas, e juntarem-se à Invencível Armada fundeada na Praia de Caxias.”

Capitão Ánhuca, no dia 24 de novembro de 1975, véspera do Dia D.

 

Fim da Primeira Temporada

14
Ago17

1ª Temporada - O Dia D (15)


Comandante Guélas

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Episódio 15

O Dia D

 

“Alegre Apocalipse”, foi o nome de código dado ao desembarque dos aliados na praia de Paço de Arcos no dia 25 de novembro de 1975, pelo ideólogo dos territórios do Norte, o burguês Carlos Ponta. Mas duas pequenas alterações mudaram o rumo da história para sempre: uma, devido à ação da Natureza e outra à ação do Homem. A primeira esteve relacionada com a maré, que estava a descer na altura da partida e devido a isto a viagem foi muito rápida; e a segunda foi causada pelo “Carapau Cocciolo”, o Repimpa comprado nos Armazéns do “Grandella”, que trouxera um defeito no pipo. Quando a “Invencível Armada” estava a passar ao largo da Praia Velha, que um dia foi a preferida do rei, o pipo deficiente deu o último pio e o ar saiu de rajada, ficando toda a tripulação a olhar escandalizada para o João da Quinta que, contra todas as ordens superiores, insistira em comer uma feijoada no restaurante “O Dinamite de Caxias” na noite da véspera. O Almirante deu de imediato ordem de desembarque, pois o estrondo tinha acordado as gaivotas do Bugio e possivelmente as tropas do inimigo, acabando com o efeito surpresa. Pelas “onze horas e trinta e cinco minutos do dia 25 de novembro do Ano da Graça de Nosso Senhor de mil novecentos e setenta e cinco”, a “Invencível Armada”, comandada pelo Almirante Craveiro Lopes, desembarcou o glorioso exército do Comandante Guélas, constituído por uma união mística dos povos do norte da vila, que se auto-intitulava “região ecuménica de valores”. Em frente do marinheiro uma inscrição numa parede chamou-o à atenção:
“Manel, a partir de hoje fazes tu o jantar! Assinado Maria, Viva a Revolução dos Cravos”
- Prometo-vos que hoje ao jantar as Marias voltam para a cozinha!
O senhor Charlot colocou-se à frente da expedição e deu ordem para a invasão cantando, com o único pulmão disponível, o hino do Alto de Paço de Arcos, “É Motorista”. O povo idolatrava-o e a partir deste momento beatificou-o. Quem assistiu do balcão a todas as movimentações deste poderoso exército, descreveu a cena como uma epopeia pintada em muitas telas abertas. O senhor Palitó encontrava-se em cima da maior árvore da Avenida, que ostentava no topo uma enorme bandeira vermelha com uma foice e um martelo, a “caçar pardais nas curvas” com a sua espingarda de canos tortos, quando viu passar por baixo o cantor-herói, descalço, deixando riscos no alcatrão com as suas magníficas unhas. Atrás ia o Horta, o proprietário do Navio Almirante, em mangas de camisa e com sapatos de cabedal brancos, pontiagudos, decorados com a figura do leão “Kimba”. Atrás ia o resto do faraónico exército, pronto para enfrentar as massas vegetantes de uma revolução sem regras, que tinha criado uma nova classe social, os Humilhados e Oprimidos de Abril (HOA). À medida que o exército do Comandante Guélas ia avançando em direcção ao último reduto do inimigo, na Praia Nova, o povo aplaudiu os novos libertadores, dando a sensação de serem todos filhos da mulher do almirante, a Quitéria Barbuda. O “É Motorista” parecia agora uma melopeia eclesial, com batida forte, cantada por toda a gente, formando um espantoso espetáculo visual. De um momento para o outro apareceu, vindo dos lados dos correios, um Mini branco, IE-35-72 com duas pessoas, um adolescente ao volante, o Marreco, e um adulto em pé munido de uma arma de pressão-de-ar, que deixou muita gente a coçar a cabeça, intrigada.
- Olha Florbela, um tanque! – Gritou um popular que estava sentado na muralha do quartel de eletromecânica.
O Almirante Craveiro Lopes cumprimentou efusivamente esta dupla de guerreiros, revelando terem um laço mais forte do que a dependência dos vícios. Mas quem seria aquele jovem capitão com a “Diana 25”? Iniciou-se uma cadeia de respostas e de contradições.
Quando o General Titó se apercebeu do terrível erro estratégico que tinha cometido, tentou recorrer ao boato para alterar a situação. Pagou ao Ló, um “expert” na matéria, para ir à Avenida assustar o povo: o inglês que se encontrava enterrado debaixo do marco na Marginal, junto à Praia Velha , Sir Conway Shiply, tinha ressuscitado e estava a telefonar para Inglaterra, do café “Kitanda” no Pimenta, a pedir o apoio da Royal Navy contra os fascistas. E para provar que tudo isto era verdade, o Titó mandara fundear uma chata ao largo da praia e trocara a tabuleta “Visites Fontainhas Grotten”, por uma com o nome do navio que o bife comandava na altura em que foi abatido pelas tropas de Napoleão, que tinham ocupado Lisboa, o “La Nymphe”, no dia 23 de Abril de 1808. Quando o agente do Sul deu de caras com o pessoal do Norte colocou-se no meio da estrada com os braços abertos.
- Fujam, fujam, o inglês da praia ressuscitou e o esqueleto vem aí, – gritou.
Tudo estava a desfavor dos sociólogos internacionalistas. Dos factos históricos o povo só sabia, e de cor, os cognomes dos reis. Esta história do inglês encontrado morto na Praia Velha só podia vir da cabeça de um “drógado”, uma das vítimas do retornado Alice e das suas ervinhas mágicas. O Ló provou ao povo que a contra-revolução do Comandante Guélas era um assunto premente. A cena de um louco com os braços abertos entre dois exércitos só precipitou os acontecimentos. Quando o Almirante Craveiro Lopes chegou à praia, foi recebido efusivamente pelo Pierre Pomme-de-Terre que os informou que o inimigo tinha sido dizimado pelas suas mãos. E para provar o que dissera, apontou para o lago de sangue que ocupava metade da praia, que pertencia às vacas do matadouro municipal. Este paçoarcoense patriota representava o amor da fama, o gosto do dinheiro, a inclinação para o luxo, o pendor para o exibicionismo, mostrando ao mundo porque éramos os maiores produtores de cortiça e fabricantes de rolhas. Aclamado pelo povo, o Comandante em Chefe dos Exércitos de Paço de Arcos de Cima (CEPAC), subiu ao Coreto, agora propriedade do Comandante Guélas, e gritou:
- Yo lo heredé, you lo compré, you lo conquisté, – fazendo suas as palavras do seu ídolo, Filipe I de Portugal.
À noite foi oferecido um jantar de sardinhas assadas e vinho tinto na Terrugem ao “bom povo de Paço de Arcos”. Consta que o Titó também esteve presente e foi o que deu mais “vivas” aos militares que libertaram o povo da Parte de Baixo de Paço de Arcos das “garras dos social-fascistas”. Titó aspirava ao Éden e ao idílio que só a Terrugem de Cima lhe podia dar. Acalentava o desejo de conhecer uma fêmea sem bigode e sem sovacões, isenta do cheiro a gordura típico das proletárias, e sem refregos a transbordar das cuecas. Por isso, quando se cruzou com a Tita dos Pés Sujos vieram-lhe à cabeça extravagâncias burguesas de lamber os dedos ao se aperceber que o noivo alemão da jovem tinha um indefetível apego à imobilidade.

13
Ago17

1ª Temporada - A Invencível Armada (14)


Comandante Guélas

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Episódio 14

 

A Invencível Armada

 

- Nunca tão poucos irão dever tanto a muitos, – profetizou o Craveiro Lopes ao entrar, na praia de Caxias, na chata com o nome “Torpedo”, propriedade do patriota paçoarcoense Horta, posta à disposição das forças do Norte.
Sentou-se na proa e contemplou o sumptuoso cenário que lhe provocou de imediato uma sensação de absorção, que mostrava que não era indiferente ao local. O balançar do iate nas ondas fazia um som e ruído, ruído e música, música e voz, voz e “É Motorista”, o hino da liberdade, sinal divino da eminente vitória dos Aliados, que iria reforçar a carga sexual do Comandante Guélas. O agora Almirante Craveiro Lopes encontrava-se numa espécie de transe, pensando nos deserdados e explorados que iria salvar da obsessão social pelo culto do corpo, que os inimigos tinham imposto ao seu povo. Após aquela estranha revolução do mês de abril, a beleza da mulher passara para um banho mensal, os pêlos andavam em roda livre, descuidavam-se durante o acto sexual e tinham ordens do Comité Central para irem até aos dez camaradas na mesma sessão. A sua armada iria desafiar os diabos vermelhos para com isso trazer o saber à vila. Foi acordado pela saída intempestiva do ar pelo pipo do Repimpa que estavam a encher.
- Almirante, temos um problema, - informou o Piloto Olho Vivo aproximando-se do “Torpedo”.
- O que é que se passa?
- O Repimpa que comprámos nos Armazéns “Grandella” tem um pipo marado.
- A armada parte dentro de meia hora e o “Carapau Cocciolo” faz parte dela. Desenrasquem-se! – Gritou o “Almirante Sem Medo”, como se auto-intitulou, mostrando que os muitos “penaltys” no "Papagaio" lhe tinham criado “músculo no estômago”, tão útil para situações como esta.
Caiu de novo nos pensamentos nostálgicos do passado e reviu-se à “chinchada” na Quinta do Leacoke, com o seu colega e amigo da primeira classe, o Titó. Tinham de dominar as fragilidades, os medos e as inseguranças, para assim poderem atolar-se nas nêsperas do José da Vacaria. Pela cabeça passavam-lhe momentos e mais momentos, enquanto os seus homens aprontavam mais uma barcaça e fixavam-na ao fundo com uma poita. Agora estavam em campos opostos, prontos a enfrentarem-se. A Dona Maria das Bicicletas encontrava-se numa tertúlia político-literária no Coreto, quando recebeu a informação do Anão-de-Suspensórios. O desembarque dos aliados do Norte iria ter lugar na praia de Paço de Arcos, tal como a visão do Desejado profetizara. O nevoeiro que invadira a costa era a confirmação. O passeio junto à marginal ficou despido de calhaus, a quem o eclético Mocho chamava “Pombinhos Brancos”, que foram amontoados a um canto, prontos para serem despejados sobre o invasor.
- Agarrem-me senão vou-me a eles, - gritou o trotskista com mais dioptrias do Jota Pimenta, o Bill.
- Calma camarada, calma, os fascistas ainda não chegaram, - explicou-lhe um “freak” de nome Taka Takata, agarrando-o pela camisola. – Eu é que estou “ganzado” mas tu é que tens as visões, ó meu.
- É das lentes camarada-meu, são das mais baratinhas, fundos de garrafa. Mas o Partido já prometeu para breve a ocupação do oculista, e depois dá-me umas lentes burguesas.
Numa praia a montante o Almirante Craveiro Lopes preparou-se para dar a ordem de partida, o Navio Almirante emprestado por um patriota já tinha o motor Yamaha de quatro cavalos a roncar e os cabos de reboque presos aos outros navios de guerra.
- Nesta viagem vamos descobrir a beleza e a magia que existe em nosso redor, - disse o cronista Alpedrinha, dando aos remos e olhando embevecido para o esgoto que cercava a esquadra e a conduzia em direção à vitória.
- Este cheiro a maresia excita-me, - exclamou o pequeno Horta, chicoteando os cavalos. – Lisboa tem o lendário Trancão, mas nós não lhe ficamos atrás com os filhos do Jamor.
À medida que a Invencível Armada ia lentamente avançando rumo ao inimigo, as paisagens encantadoras sucediam-se em catadupa. Como já era seu hábito, o marujo Charlot levava os pés dentro da água, que tanto amava e o inspirava.
- Está quentinha! – Elogiou, mostrando ter tido fortes influências do impressionismo no passado, sobretudo do Álhi.

Mas agora parecia estar mais ligado ao abstracionismo lírico, tinha ficado mais tridimensional com a Revolução dos Cravos.
- Não tarda nada, cantas, – profetizou o Zé Preto, mostrando que o Norte era multiétnico.

– Gosto sempre de assistir à ressurreição do Sol, – disse o Trovão apontando para a Lua.
Quando passaram em frente à Torre do Relógio, o nevoeiro abriu um caminho até ele, e mostrou à Invencível Armada a silhueta imponente da Quitéria Barbuda, que escolhia sempre onde queria aparecer, e que estava ali para saudar os guerreiros do Comandante Guélas. Ao seu lado estava o Barão Pierre-Pomme-de-Terre que sabia que se avizinhava uma guerra e que era preciso escolher o lado a que se pertencia. Era este o seu grande dilema. Mas como empresário o melhor seria ter um pé no Norte e o outro no Sul. Por isso apresentou-se aos dois líderes como um “infiltrado da melhor qualidade”, profissão que lhe dava total independência e liberdade criativa, sem pressões de qualquer ordem. De repente um raio, vindo dos lados do Bugio, tombou na cabeça do Alpedrinha, foi-lhe até aos ossos, e saiu pelo ouvido esquerdo, tendo ainda tempo para acender o cigarro que o Charlot acabara de pôr na boca. Por momentos todos pararam e ficaram a olhar para o cronista, que fazia argolas de fumo com a boca. Subitamente começou a verter para o caderno, como se tivesse aberto uma via directa do caldeirão de pesadelos do seu subconsciente, um turbilhão de caracteres chineses que depressa esgotaram as folhas pautadas, obrigando-o a continuar pelo bordo direito do barco, assim o obrigavam as mais tensas vibrações mentais.
- O barco, ele vai escrever-me o barco todo, - gritou o Horta atirando com o cronista pela borda fora.
Anos mais tarde esta enseada acabou por ficar conhecida como a Praia da Sereia Fascista, porque alguém do Sul, a espiar as movimentações da Marinha do Norte, disse ter visto uma sereia a declamar violentamente em cima de uma rocha em Ladino. Os ecos da invasão agitaram as mentes dos sulistas e puseram em alerta as gentes do Coreto. Os corifeus do regime tudo fizeram para que os horrores do Norte não incomodassem o Comité Central. Contaram aos seus que as emoções da turba burguesa traziam sempre muita infelicidade. Eles eram a luz, o Farol do Socialismo, e os do alto representavam a escuridão, o passado. Na proa do “Torpedo” o Almirante Craveiro Lopes olhou para o horizonte e sentiu a grande força romântica do povo de Paço de Arcos, o impulsionador das verdadeiras transformações, o projector que iluminava a vida com mais vida.
- Quando os virem, pedrada até lhes partirem os cornos, a reação não passará, - gritou o Pingalim, que tinha sido promovido a cabo pelo coronel Cabrita, e comandava um destacamento de cinco bolchevistas, que glorificaram a violência como resposta à violência que alegadamente os cercava.

Eles conheciam os relatos da brutalidade extrema dos homens do Comandante Guélas, que chegavam ao cúmulo de usarem as meias do Ánhuca e as cuecas do Bajoulo para extraírem informações. Pesadelos destes tiravam o sono a qualquer um. O General Titó olhou para os lados da ponte e lembrou-se do seu antigo amigo que agora comandava a Invencível Armada, algures dentro daquele nevoeiro cerrado. A Revolução dos Cravos tinha acabado com o que de mais sagrado existia, a amizade. Mas só assim é que ele conseguira passar de pescador analfabeto a gerente diplomado e tudo graças ao partido, que saneara do banco o vizinho burguês.

12
Ago17

1ª Temporada - O Desejado (13)


Comandante Guélas

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Episódio 13


O Desejado

 

O Focas sempre esteve ligado à rua e foi aí que se revelou a sua criação gráfica. Uma dor de barriga súbita obrigou-o a agachar-se junto a um muro acabado de caiar e a inspiração veio-lhe sob a forma de um relâmpago. Agarrou na ponta de filtro preta que tinha no bolso e desenhou a figura mais portuguesa de todos os tempos, um “malho das Caldas”, que na vila de Paço de Arcos era enfeitado com penugem nas rodas. E como o produto estava a demorar tempo a sair, devido ao tamanho descomunal, daí as cólicas, escreveu em cima “Viva o Comandante Guélas”. Foi o início de uma guerra sem escrúpulos, em que se pretendia ser melhor do que os outros, estar em mais sítios, fazer graffitis maiores e mais bem feitos. “A terra a quem a trabalha, mortos para fora dos cemitérios”, escreveu o Balacó a carvão na parede da estação, enquanto esperava pelo “verde” que vinha do Cais do Sodré com os jornais do “Avante”. “Lagostas para a Sibéria já”, expressou-se o João da Quinta na parede do restaurante “Os Arcos”, mostrando que estava um pouco confuso em termos políticos. Mas não era o único! O Conan Vargas queria seguir a carreira desportiva para impressionar as fêmeas, por isso inscreveu-se no Clube Desportivo de Paço de Arcos na secção de Filatelia. Mas cedo os dirigentes se aperceberam que não conseguia colar os selos com a língua, e reduziram-no a sócio.

- Vou inventar uma modalidade só minha, - disse um dia ao Balatuca, agarrando numa frigideira e numa bola de ténis, que roubou ao Lopes. 

O jovem e turbulento regime republicano do pós-25 de abril de 1974 evoluía no teatro político português e paçoarcoense. Na praia da vila estava agora estacionado um autocarro de dois andares que dava apoio às meninas finas do Jota Pimenta e seus amigos, principalmente marujos da Direção de Faróis que andavam em roda-viva , pois o comandante dormia a noite toda e proibia-os de o acordarem, mesmo que “houvesse uma nova revolução”. A guarda era feita no autocarro com a pistola sempre à mão. E foi numa manhã de nevoeiro que tudo se precipitou. Mas recuemos no tempo. O aristocrata Daniel Martins de Almeida tinha resolvido ir acampar, à semelhança dos amigos no Algarve, e foi até onde as posses o permitiram, ou seja, a praia de Paço de Arcos. Levou dois cobertores, um para fazer de tenda e outro de cama, onde se deitou também o Lopes para lhe aquecer os pés. Pelo caminho resolveu ir a Vila Fria visitar a mãe e primeiro deu de caras com a vizinha, a Piedade, cujo corpo já não lhe dava lucro, mas sim prejuízo. Cumprimentou-a apalpando-lhe as mamas, mostrando que a meteorologia da sua alma era tão instável como o clima. Foi o descalabro. Choveram paus, pedras e tudo o que viesse à mão, incluindo um frango, obrigando o senhor Charlot a uma retirada estratégica, que só parou junto à tenda, ainda a tempo de ver o Sol a pôr-se. E estava tão cansado que nem acabou a lata de sardinhas em tomate, tendo caído em sono profundo. Foi acordado abruptamente a meio da noite por um estrondo seco e uma luz vermelha intensa. Espreitou e viu quatro vultos no areal, um deles metade de todos os outros, que reconheceu como sendo o Trovão, enquanto que da sua direita aproximava-se do grupo um desconhecido em passo acelerado e com uma pistola na mão.
Noutro canto da vila realizava-se o Campeonato Norte / Sul de ping-pong, mais propriamente na sede do Futebol Clube de Paço de Arcos. Os dois matraquilhos carunchosos tinham sido transformados em soberbos campos da modalidade escolhida para o dérbi político, depois de lhes terem colocado em cima várias madeiras desviadas pelo Todo-Boneco da obra para onde costumava levar as moças que serviam nos chalés da burguesia. A fazer de rede estavam pedaços retirados de uma arte de pesca da Praia Velha. O Conan e o Balatuca ainda tentaram substituir as raquetes por duas frigideiras e uma bola de ténis, mas foram de imediato expulsos, acusados de "tentativa de homosssexualidade desportiva". O Norte tinha trazido uma equipa de peso que ameaçava lançar um “vómito ácido em estado puro” e o Sul prometia esmagar “os fascistas”. Apresentou-se vindo diretamente do Grupo Coral Vermelho da Porcalhota o Cara-de-Cavalo, que prometia estar atento às “manhas da reação”. Todos foram revistados à entrada, os sacos de plástico da “Casa do Adro” ficaram na rua, para evitar o terrível “Litopone”. O futuro anfetaminado Janeca prometia “mão pesada para os patetas dos vermelhucos”. Era uma época em que ainda se acreditava ser possível inverter o caminho da vila, que se estava a converter num sítio muito complicado. No lado esquerdo da mesa número um estavam os sociólogos internacionalistas, comandados pelo camarada Bill, e do lado direito da mesa número dois os sociólogos moralistas, liderados pelo Ratinho Blanco. Pelas ruas do país o exército desconjuntado e desmoralizado era o que esta gente precisava. A um canto da sala um casal degladiava-se por amor, agrediam-se de cada vez que o macho dava um gole na cerveja. Ele era o Bajoulo, um ser que desejava misturas, que vivia em contradição, repartido entre as suas loirinhas e a amada Tita dos Pés Sujos, sendo um dissidente de si mesmo, sem paz interior manifesta. A namorada acusava a cevada como a principal responsável pela falência do corpo do seu príncipe.
- Eles foram criados em territórios insólitos e banais, – gritou o Titó, mostrando que as palavras eram sempre as mesmas, mas o estado de alma nem sempre. – Os fascistas não sabem jogar ping-pong.
- Nós prometemos um “Novo Paçoarquiano”, – gritou o jogador loirinho que vivia no Sul, mas desejava ardentemente o regime do Norte, tirando do bolso duas bolas cor-de-laranja com que pretendia iniciar a partida contra o Balacó.
Fez-se um silêncio ensurdecedor, que foi quebrado minutos depois pelos gritos ensandecidos de um Titó à beira de um ataque de nervos.
- Bolas fascistas do PPD, eles nem as regras democráticas respeitam.
O puto loirinho tentou explicar que o pai as tinha trazido de Espanha mas foi em vão. Voaram as mesas, o presidente anão com suspensórios refugiou-se na sala a ele destinada, que estava ocupada pelo Todo-Boneco e por uma das suas fabulosas sopeiras, exploradas pelos burgueses do Norte, e devido à confusão foi lançada uma carga dupla de “Litopone”. A partir daí o nome de guerra do jogador de ping-pong da seleção do Alto de Paço de Arcos passou a ser Laranja e a acompanhar para sempre no coro o grande trovador Charlot, até que a morte os separasse.
Quando o marujo, que estava de plantão na Direção de Faróis, viu a luz vermelha de SOS lançada pelo Trovão, o adolescente mais pequeno da vila, levantou-se de imediato da mesa, atirando com as cervejas para o chão, e abandonou o autocarro-bar, ao mesmo tempo que puxava da pistola de guerra.
- Mãos ao ar, quem se mexer morre, – gritou quando estava a cinco metros do grupo.
- Mas quem é o senhor? – Perguntou o Carlos Pontas atirando a beata para os pés do intruso.
- Sou a autoridade marítima desta zona e presenciei o lançamento de um artefacto proibido por lei.
- Mas nós não lançámos nada, – explicou o pequeno polegar, mostrando as mãos, sendo secundado pelos amigos.
- Foram vocês, eu vi, – insistiu o militar, cambaleando.
Quando tudo já parecia estar resolvido, eis que chega o Chico Sá acompanhado do Peidão, vindos diretamente das Fontainhas:
- Não vimos nenhumas ratas, - explicou o primeiro, abanando a espingarda pressão de ar “Diana 38”.
- Alto e pára o baile, mãos no ar ou eu metralho, – gritou de novo o marujo, cambaleando mais uma vez. – Foi com essa arma que vocês atiraram os projéteis e por isso vão ser detidos no meu quartel.
- Mas os projeteis não cabem no cano, – tentou explicar o Peidão.
- Isso é irrelevante, em frente marche, – ordenou o marujo apontando o pistolão.
O Titó tinha por lema que delitos típicos da “decadência capitalista” nunca ocorreriam nos territórios do Sul. Devido a isso as mulheres apresentavam enormes bigodes e descomunais sovacões, desde que o Comité Central declarara a depilação como um ato burguês. Assim, este chefe máximo do poder de Paço de Arcos de Baixo exigiu que no torneio usassem raquetes de madeira e que o sorteio fosse feito pelo Anão-de-Suspensórios, o Presidente do Futebol Clube da vila, autoridade máxima daquele espaço desportivo, uma amostra de homem cuja sabedoria era feita de curiosidade e cultura, adquiridas quando ia a cavalo da mota do pai, dentro da caixa da fruta. Quem falava com ele aprendia e descobria que tinha como profissão cuidar dos seus fantasmas. Foi buscar a caixa de charutos onde tinha guardado o dinheiro das quotas e reparou que estava vazia e que o cobrador corou de imediato.
- O dinheiro está num sítio seguro, – justificou-se o Pierre Pomme-de-Terre. – Com este tipo de gente nunca se sabe o que poderia acontecer.
Quando o Sol se preparava para nascer, o turista de nome Charlot teve necessidade de evacuar e escolheu a beira-mar. A praia estava vazia e o nevoeiro que a cobria era uma boa camuflagem. Abriu uma cova e agachou-se. Quanto ao Lopes, sentou-se junto ao dono e ficou a observar as gaivotas. Nesse momento os prisioneiros tinham acabado de ser soltos, e o marujo iniciava a sua ronda com os binóculos. Parecia ter um ódio por si mesmo, porque só ele aceitava ter como comandante um militar que passava a vida a dormir e proibia que o acordassem. De cada vez que surgia uma ameaça ao quartel, tinha de ser ele a resolvê-la, e por isso o espaço para os copos era mínimo, mesmo nestes tempos de revolução em que a palavra era farta, mas de pouca valia. Quando a figura do Charlot e do Lopes apareceu, envolta em nevoeiro e aumentada pela luz da madrugada e pelos vapores do álcool, veio-lhe à memória a história do rei português que tinha desaparecido lá para os lados de África:

- O Desejado? Só me faltava este maluco! - Deu corda aos sapatos, abandonando para sempre a “carreira marítima para o Seixal".

11
Ago17

1ª Temporada - O Eletricista (12)


Comandante Guélas

 

Antonio Costa Estrabico.jpeg

Episódio 12

O Eletricista

Quando o assunto dizia respeito à  imagem da vila de Paço de Arcos as diferenças entre o Norte e o Sul desapareciam e ambos uniam esforços pela terra. Em 1975 os filmes indianos esgotavam o Cine-Teatro, o Marreco da Projeção não tinha mãos a medir, e no fim de cada sessão meia sala estava a chorar e a outra a disfarçar o í­mpeto para fazer o mesmo. Foi nessa altura que se deu a conhecer o senhor Ginja, o mais imaginativo agente cultural de todos os tempos, que se apresentou no Chalé da Merda com o argumento para um filme indiano com um monhé paçoarquiano, o Jorge. Para tí­tulo propunha "O Eletricista" concorrência direta com com "O Mecânico", de Charles Bronson. Prometia uma catadupa de imagens gráficas, muitas caleidoscópicas. O diretor do espaço cultural na altura era o Anão dos Suspensórios, cargo que acumulava com o de Presidente do Futebol Clube de Paço de Arcos, uma instituição milenar com dois campos de matrecos e um espaço que acumulava Sala da Presidência e WC, um open space. De cada vez que um sócio desejava cagar, o anãozinho tinha que sair. As filmagens do "Eletricista" com o Jorge Monhé no principal papel iniciaram-se sob um sol abrasador nas Fontainhas, o local mais in da vila, onde a maioria da população pós-25 de Abril fora concebida, um baby boom. A estória passava-se em 1917 com a partida da Segunda Divisão do Corpo Expedicionário Português para a Flandres, da Praia Velha ,outrora a exclusiva do rei. Nele iam, em representação da vila, os cabos Jorge Monhé, o galã e Zé Maria Pincel, que ia para a guerra por ter uma dí­vida para com o mecânico Cabrita. A comandar este temí­vel destacamento estava o tenente Bajoulo. O herói desta longa metragem depressa se revelou um homem do futuro, pois foi para o campo de batalha com todos os seus acessórios: pilhas, busca-pólos, lâmpadas para lanternas e um transí­stor, recuperado da garagem do avô do Peidão. Como realizador o Ginja mostrou ser único, tendo alterado a história, pois o Norte necessitava urgentemente de mais heróis. Três paçoarcoenses, que inclui­am um eletricista de nome Jorge Monhé, puseram em debandada, depois de uma carga de Litopone, os 55 mil homens das oito divisões do 6º Exército Alemão, na batalha de La Lys, no dia 25 de Abril de 1918. A cena que mais marcou a geração paçoarcoense do pós Revolução dos Cravos foi quando o cabo Zé Maria Pincel acertou na cabeça do general alemão Ferdinand Von Quast com um martelo, depois de se ter irritado com a sua Zundapp que não queria pegar. O general inimigo ficou a cagar fininho atrás de uma trincheira, cena considerada de sexo explí­cito, mesmo naquele tempo de todas as liberdades, e como tal censurada, tanto pelo Norte como pelo Sul. Quanto ao Tenente Bajoulo, que falava alemão, conseguiu apanhar o responsável pela ofensiva adversária, o Erich Ludendorff, e ameaçou meter-lhe pela boca abaixo um par de meias do Ánhuca, trazidas expressamente da sua pátria bem amada, se ele não mandasse retirar as suas tropas. Isto provocou um grande desânimo nos alemães, proporcional ao caso do mapa cor-de-rosa com os portugueses, levando a insubordinações, deserções e suicí­dios. De notar que o 11º Corpo Britânico já tinha fugido uns dias antes. O filme acaba em apoteose com os três heróis numa colina, todos a tentar pegar, de empurrão, a Zundapp do Zé Maria Pincel para poderem regressar à  pátria. A câmara dá uma volta de 360 graus. Para que o feito destes homens ficasse para sempre enraizado na memória das novas gerações, e fizesse efeito lá para o ano de 2008. Mas, infelizmente, as ervas do Alice é que nunca mais foram esquecidas. Durante alguns anos o mimetismo entre as personagens e os espetadores podia ser visto no fim das sessões e já fora do cinema, com a garotada a divertir-se em lutas simuladas de Kung-Fu, misturadas com cavalinhos em peidociclos, numa disputa entre Fameis, Zundapps e Casais Boss, do Sul, e as Yamahas, Suzukis e Hondas do Norte. Com o fim da fita abriram-se novamente as hostilidades entre aqueles que queriam o poder absoluto da vila, e cada um ocupou o seu lugar na rua. A separar as duas claques estava o Alice que tinha clientes em todos os setores do pensamento, e prometia que as suas ervinhas serviam para "ânimar a malta". Junto à  sede velha do Clube Desportivo de Paço de Arcos o senhor Charlot saltou para cima do mini branco do Capitão e entoou o hino do Norte, o "É Motorista", acompanhado por dúzias de fanáticos do Comandante Guélas. O aparato policial junto à  nova loja de desporto desviou as atenções políticas de todos os manifestantes e obrigou o Titó, que se preparava para contra-atacar com "Eu vi um sapo", hino do Sul, a correr para o local. Tudo o que fugisse à  rotina poderia ser uma oportunidade polí­tica.
- Os fascistas atacaram e saquearam uma loja, - gritou - dando iní­cio ao boato. -  Mas estão encurralados lá dentro pelo povo. Abaixo a reação.
- Abaixo a reação, - disse em coro parte da população.
- Foi nisto que deu a revolução, acabou a segurança, - disse uma voz saí­da de um megafone. Só o Comandante Guélas é que vos dará a segurança. Dentro da loja estão terroristas social-fascistas.
Ao comando das operações estava o
Chefe Bigodes que tinha cercado o local e obrigado os larápios a permanecer no interior do espaço comercial. Quando viu que no meio da multidão estava o seu inimigo juramentado, o Mac Macléu Ferreira, estremeceu e pôs a mão na pistola.
- Calma, calma, Cabeça-de-Giz - disse para si próprio. - Agora não é a altura de confrontos. A tua missão é deter os bandidos que estão dentro da loja e não multar o caixa-de-óculos loirinho.
A situação estava a descontrolar-se. Cada vez ia chegando mais população e o espaço estava a ficar curto. Uns acusavam os ladrões de fascistas, outros de comunistas. Ora se ouvia a palavra MIRNE, ora as palavras UEC. Quando a cena parecia estar a descambar para a violência, o Chefe Bigodes lançou um ultimato aos ocupantes:
- Ou se rendem, ou atiro para­ umas cuecas do
Bajoulo e umas meias do Ánhuca. Têm cinco minutos para se entregarem.
Nem um segundo foi preciso. As portas abriram-se com estrondo e saí­ram de lá o mano do
Janeca (do Norte), o Pingalim (do Sul), o Tubarão (do Norte) e o Grilo (do Sul), cada um com um par de ténis do lado direito em ambos os pés, outra coisa não seria de esperar de um mostruário de uma loja de desporto.

 

10
Ago17

1ª Temporada - A Última Exposição do Século (11)


Comandante Guélas

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Episódio 11

 

A Última Exposição do Século

 

Com o aparecimento dum Pub no Centro Comercial “Áries” em frente à estação da CP e a vinda do jovem Capitão da 5ª Divisão, que fora um rapazinho flor de estufa, apaparicado e reprimido, que estudou num colégio de freirinhas espanholas, nasceu o termo “handicapado”, que recauchutou os termos do Antigo Regime, “meretrício” e “proxenetismo” de Puta para Senhora Puta. O Centro Cultural de Paço de Arcos reagiu de imediato com a exposição “Grandes Paçoarquianos”, uma parceria Norte/Sul em defesa da razão e dos bons costumes. As portas abriram-se no dia 11 de Setembro de 1975. Ao entrar no “Chalé da Merda” o visitante apercebia-se de um ambiente condizente. Ao longo das oito salas desenhavam-se os perfis dos génios da terra, com as suas obsessões e angústias, glórias e dificuldades coevas e póstumas. O primeiro a aparecer era o esqueleto do Fernindó brigão e o seu cão ensimesmado, o Cardoso, transformado em tapete desde o dia 25 de Abril de 1974, quando o João da Quinta apareceu na rua, para impressionar a Isaltina, montado numa Chaimite. Na sala ao lado estava o Silva Americano e a sua famosa bicicleta que ostentava uma bandeira vermelha, que representava a capacidade de sobreviver a todas as reviravoltas revolucionárias. O Centro Cultural estabelecia bem o elo entre a produção artística e o contexto histórico, fatores importantes para enquadrar a vila. Na sala número três, da responsabilidade do Norte, estavam dois bonecos de cera que representavam o casal mais mediático da vila, do antes e do depois da Revolução dos Cravos: Craveiro Lopes e a sua Formosíssima e dulcíssima Quitéria Barbuda, na cena mais marcante do seu casamento, uma oferta da Paróquia após uma sugestão do acólito Xinoca, o único chinês da vila, em que o marido tentava acertar com uma cadeira nos cornos da mulher, depois de ter prometido amá-la e respeitá-la, como o tinha feito durante quarenta anos de vida em comum na barraca da Terrugem. O contexto estético era dado por uma pirotecnia sonora sob a forma de sombras chinesas a levantarem as pernas. Logo de seguida o visitante era confrontado com um Titó em barro, na sala reservada ao Sul, vendendo os seus famosos “Avante”, tendo por fundo uma grande fotografia da estação de Paço de Arcos, onde aparecia a um canto o estudante Focas a arrear um dos seus famosos cagalhões. Na sala cinco a figura imponente do siderante Capitão de Abril, o Porão, feita em cartolina pela Escola de Vela do Clube Desportivo de Paço de Arcos, uma forma de agradecimento pelos incontáveis lanchinhos com que ele presenteou os velejadores masculinos da classe “Optimiste” durante os largos meses de agitação, tendo ao pescoço uma réplica dos binóculos com que se deliciava a ver o Chico Sá de cuecas lá para os lados do Jota Pimenta, gamados pelo Tonico para ir comprar uns charros ao Alice. Vivia-se nesta altura o auge da epidemia, com diferentes camadas de adolescentes tentadores. A sala seguinte era a mais espaçosa do Centro, e representava a glória nacional, através do bombeiro Álhi esculpido num barrote com cimento, dentro de uma gruta, desdenhando o “fogo que ardia sem se ver” (Fernindó), com um ar negligée, lutando titanicamente para salvar uma bilha de gás. O resto da ação era contada numa parede ao lado, grafitada pelo Focas a castanho. O Álhi usava a astúcia para não causar o pânico, quase fizera em farrapos o seu blusão que ostentava orgulhosamente “Bombeiros Voluntários de Paço de Arcos”, tendo conseguido aguentar a indiferença dos colegas. Gritou com truculência, lirismo e imaginação contra o “fogo que ardia sem se ver” (Fernindó) mas já lhe consumia as cuecas. Mas por fim chegou à bilha e ao mesmo tempo que a arremessava do sétimo andar contra a multidão, deu o famoso “berro do Ipiranga”:

- Cuidado com as cabeças!

Na sala sete um alemão feito de sabão “Macaco”, com uma peixeira sentada no seu colo, sendo idolatrada na sua beleza, mostrando que por detrás da Tita dos Pés Sujos estava sempre o Bajoulo, convidava o visitante a uma pausa fresquinha, com o patrocínio exclusivo do restaurante “O Tino”. Quem se sentasse à sua mesa tinha direito a uma imperial, ao mesmo tempo que puxava um cordelinho para ouvir as palavras do sábio:

- Sou uma esponja que se impregna e depois expulsa.

E finalmente na sala número oito aparecia a figura do fora-da-lei e falsificador, o ser humano mais complexo da vila, o marquês Pierre-Pomme-de-Terre, vestido com um elegante fato de sapateiro viúvo, com um soberbo relógio de bolso da marca “Roskof”, despedia-se dos visitantes e agradecia-lhes o tempo de aprendizagem e sabedoria que tinham dispensado à cultura da vila: “ O que me agrada e me inspira na vida, torna-se um objetivo para mim. A figura de Fernindó sempre me perseguiu. Vejo-o como um poeta, um louco, um profeta, um mistério indecifrável. E no entanto ele considerava-se um trapezista” (últimas palavras antes de se pirar para o Brasil com a Interpol atrás). Nesta última Exposição do Século da Cultura Paçoarquiana, realizada no ano de 1975, a encenação das oito maravilhosas salas do Chalé da Merda teve como tema o “Eterno Retorno”, que distinguiu o trigo do joio e afirmou o óbvio, ou seja, que a obra do Comandante Guélas pouco ou nada tinha a ver com o espírito do tempo. A vila, principalmente a zona Sul (abaixo da linha do comboio) estava mergulhada num “cocktail” estético composto de miúdas com bigode, adolescentes de boinas vermelhas, crianças que se aliviavam para os cartazes da “Maioria Silenciosa”, candidatos descartáveis e principalmente recicláveis, para satisfação do Comité Central, que descaracterizavam o espírito de uma região que um dia aclamara o seu herói Patrão Lopes, nome mais tarde dado pelo poeta Charlot ao seu inigualável rafeiro, que teve o seu eterno repouso aos pés da estátua da Avenida. O conteúdo das salas deste Centro Cultural “levou os jovens arautos da época a imaginárias leituras políticas, feitas por pseudo-moralistas de pacotilha, de braço dado com apóstolos despersonalizados com uma consciência primitiva” ( in “Cronista após um charro”, Ratinho Blanco, Edições Alice). Foi a representação simbólica de um estado avançado de composição cultural, que estava ameaçado pelo colapso de um estilo de vida e de ordem política que o Norte rejeitava.

- Prefiguro um apocalipse iminente, – disse o Comandante Guélas na véspera do Dia D, o desembarque dos aliados na Praia Velha. - Nunca tão poucos irão dever tanto a muitos, – profetizou o Craveiro Lopes ao entrar, na praia de Caxias, na chata com o nome “Rissól”.

E na porta da saída, só às sextas feiras e aos sábados, os visitantes ainda podiam ouvir as palavras sábias do Rebelo, montado na sua reluzente Zundap, com fitinhas coloridas nos punhos, lavado de fresco e com muita brilhantina:

- Boa noite, o meu nome é Rebelo, pintor da construção civil, 44 anos de idade, e por isso não há puta que me arreganhe a cona!

09
Ago17

1ª Temporada - A Caixa do Alice (10)


Comandante Guélas

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Episódio 10

 

A Caixa do Alice

 

A transação comercial foi rápida, o senhor Alice acabara de vender um charro à Sapo, a locutora da “Mesa Triangular”. Desde que tinha aparecido na televisão julgava-se uma artista de renome, como a mãe, e por isso marcara para a tarde um comício na parte de cima do Coreto. Os cartazes feitos de cartolina comprada na “Dáni”, ostentavam letras pretas escritas a ponta-de-filtro, gamadas ao Professor Coelho, que a anunciavam como a “Passa-visionária”, que a extrema-esquerda transformou em “Passionária”, porque dizia ter visões de cada vez que dava umas chupas, ficando nessas alturas com outro tipo de inteligência. O seu mandatário era um peso pesado da política, o Pedro da Avozinha. Mas havia concorrência. O senhor Tubarão, também cliente assíduo do Alice, apresentara-se na linha de partida para a conquista do cargo mais cobiçado da vila e das redondezas: Governador do Chalé da Merda, o edifício para onde confluíam todos os dejetos dos paçoarcoenses. O nome do mandatário cilindrava os outros, Pórki, cujo currículo ostentava o noivado com uma sobrinha preta do Sá Carneiro, que nascera em Trajouce a sonhar com Cascais. Vindo de Caxias apresentou-se no “Manuel da Leitaria” o senhor Alpedrinha, um colecionador obsessivo de caderninhos onde anotava os superlativos dos adversários. Ao senhor com cara de porco disse ser um excelente detetor de mentiras, mas o Pórki iria ser apenas um condimento escasso, pudico e enganador, de uma candidatura que se perderia em combates exaltados. Os charros do Alice tinham aberto a caixa com o seu nome. Entretanto apareceu mais um concorrente, o Pingalim, que não queria ficar para trás e após um dos maravilhosos cigarrinhos disse ser a reencarnação do Fernindó, despejando sobre os presentes um discurso que revelava um amargo dilema ontológico de adolescente, trazendo como mandatário o senhor Cociolo, que foi ainda menos convincente que o candidato: prometia restaurar todas as aceleras da vila e oferecê-las aos deficientes mentais, que eram metade da vila.

- Isso é demagogia! - Gritou o Vitor Enfraquecido.

Formou-se uma fila interminável de potenciais ganhadores, que teve de ser rapidamente desmobilizada pela autoridade máxima da região, o Chefe Bigodes. Na vila avultavam agora agitadores caxienses, guerrilheiros de Trajouce, recentes marxistas de Porto Salvo, nacionalistas oeirenses, militares de Algés, queques da linha e raparigas de bigode a fumar Definitivos. A época era única e tudo graças ao 25 de Abril de 1974. Num dia uma mesma pessoa podia ser cúmplice ao acordar, vítima ao almoço e adormecer carrasco. E graças à descolonização que tinha corrido com o inescrupuloso Alice, e as suas ervinhas mágicas, de Angola, a gloriosa vila de Paço de Arcos encontrava-se agora num estado arrebatador de exaltação febril e desconhecida. A morte, as pulsões e as paixões mais recônditas estavam a invadir Paço de Arcos, neste “Ano da Glória de Nosso Senhor de Mil Novecentos e Setenta e Cinco”. A vila estava confusa, fragmentada e caótica. A epidemia viral dos Capitães de Abril representava a necessidade de um castigo divino e da possibilidade de uma contaminação vermelha. E na Serra do Maestro Guélas estava a cura, a chave da felicidade eterna que prometia abrir as memórias das existências passadas, guardadas num nicho especial por gente escolhida a dedo: Ánhuca, Manelinho da Carroça, Craveiro Lopes e Quitéria Barbuda. Os do Sul tinham medos inatos e recalcados no mais íntimo de si, e era por isso que reclamavam a igualdade para todos os paçoarcoenses. Eles eram um bom retrato psicológico do estado de espírito e mesmo da saúde mental desta comunidade de Paço de Arcos. A vila fervilhava de gente, não havia mãos a medir na restauração.

- Tremoços? Só temos com casca! - Respondeu certeiro o auto intitulado comendador Celestino.

- Sai um copo de água branca, uma imperial de cerveja e um café preto, - ordenou o Alfredo do Pombalino.

08
Ago17

1ª Temporada - A Mesa Triangular (9)


Comandante Guélas

 

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Episódio 9

 

A Mesa Triangular

 

A câmara de filmar que o Escoto tinha nacionalizado ao pai, já só apresentava um “P” de “RTP”.
- “P” de proletariado, tudo agora é do povo, – explicava aos presentes.
O alcance da transmissão chegava aos dois símbolos de poder da Vila de Paço de Arcos: o Depósito de Água no Alto da Loba, no Norte, e ao Coreto da Avenida, no Sul. Foram convidadas as personagens mais relevantes de todo o concelho, incluindo o Zé de Porto Salvo, aristocrata portosalvense culto, elegante e viajado, com ideais da pureza da raça, acompanhado pelo seu gangue de escuteiros, que tinham violado o Curtis na noite anterior, a pedido deste. No Centro Comercial “Áries”, único em toda a Costa do Estoril, no espaço junto ao café-restaurante do Senhor Xantola, o Capitão inaugurara uma exposição cujo tema “Os Lugares de Fernindó” convidavam o visitante a deixar-se guiar por uma coleção de fotografias, cedida pelo senhor Frank Monka, vindo diretamente dos EUA para ensinar que a Lua era um planeta, que tinha participado na célebre “Guerra de Limões” entre Algés e a Trafaria. As imagens construiam cronologicamente todos os sítios por onde o poeta tinha defecado, as barracas onde vivera, os sacos de cimento que gamara em parceria com o guarda-nocturno. O poeta chegara a Paço de Arcos nos anos 20, após uma bebedeira monumental que apanhara no Cacém, e lhe derretera os neurónios de orientação, deixando-lhe uma “branca” em relação ao caminho de regresso. E a cultura da vila fizera o resto! Para os adolescentes pouco inclinados para estas manifestações intelectuais, o Capitão tinha posto à disposição o seu apartamento, onde prometia filmes de ação sobre Cabinda, pipocas e uma cama para os mais atrevidos.
Às 21 horas do dia 25 de Setembro de 1975, o senhor de nome Escoto carregou no botão da máquina e deu início ao primeiro encontro televisivo entre o Norte e o Sul. Meia-hora antes tinha havido um pequeno incidente entre dois dos presentes, um apoiante do Comité Central, o Titó, e outro um devoto do Guélanismo, o Todo Boneco.
- Agarrem-me, senão eu mato-o, – ameaçou o vendedor de jornais do “Avante”.
- Espera aí que já cospes, – respondeu-lhe o conquistador de bairro.
À medida que os convidados iam passando pelo tapete vermelho, vendido pelo Pieerre Pomme-de-Terre a preço de saldo, e gamado na sede dos escuteiros, as carpideiras da praça, alugadas pelo João Gordo, estavam num frenesi. A moderadora chamava-se Sapo, nome pomposo com figura de sopeira. E era menina!
- Ação, - gritou o Escoto, fazendo sinal com a mão.
- Boa-noite senhores telespectadores, – disse a xungosa com uma voz de bagaço, mostrando à vila a falta de dentes. – Estamos aqui a fazer jornalismo de excelência, os ventos da liberdade trouxeram o futuro a Paço de Arcos, hoje vamos falar de cultura, do nosso conterrâneo, do nosso poeta Fernindó. Todos têm os seus poetas, nós temos o Fernindó.
- O Fernindó é do povo, – gritou o Titó aproximando-se do microfone da Maria.
- Isso são acusações graves e o verbo é rasteiro, – acusou o Ánhuca, apontando para o adversário e conseguindo palmas de metade da assistência.
- Cavalgadura!
- Quem, eu? – Perguntou indignada a locutora.
- Não foi para a senhora, mas para aquele fascista do Norte.
- Nem a memória do Fernindó respeitam. A comunistada está a estilhaçar os cristais e as porcelanas da vila, que ainda sobram. O poeta é nosso, só nosso, – disse o Ánhuca, batendo três vezes no peito com o punho fechado.
- O 25 de Abril deu-lhe a liberdade de delirar em público, – atirou o Titó, enchendo a cara do seu camarada Balacó de perdigotos.
- O nosso glorioso Comandante Guélas há-de chegar até aqui, nem que seja à bomba.
A palavra “bomba” enervava o Sul. O ataque no Cine-Teatro, a dez metros daquele local, tinha-os traumatizado “olfativamente” para sempre. Um simples odor a maresia era o suficiente para os obrigar a fugir.
O debate foi interrompido bruscamente pelo Marmota, o irmão do Pinguim e do Pingalim, que já não iria durar muito, mas não sabia.
- Os fascistas conspurcaram o muro da praia que o Comité Central reservou para as velhotas da nossa terra se bronzearem. Escreveram “Cantinho das Putas Velhas”.
- Abaixo o Fascismo, viva a Reforma Agrária, – gritou exaltado o Titó, pondo-se em pé na mesa.
Mal sabia ele que a câmara de filmar tinha dado o berro e que o Escoto fingia que estava a transmitir. Não muito longe dali, o Craveiro Lopes já tinha aviado dois secos e um molhado na Quitéria Barbuda, acusando-a de estragar a televisão e de o impossibilitar de ver o debate. O barulho ensurdecedor das hordas fanatizadas dos fascistas do Norte entoando o seu hino “É Motorista”, letra e música do grande Charlot, envolveu a sala e foi o sinal para mais uma carga de Litopone. O produto já borbulhava no saco, quando os servos do Comandante Guélas abandonaram o local e foram fazer uma visita de cortesia à Mercearia “Aveirense” de Silva & Sousa Lda., Rua dos Fornos, nº 17ª/17B e 17 (números em metal) ou 17/17ª e 18 (números a tinta). Cinco minutos depois já todos corriam em direção ao Norte, levando nos bolsos rebuçados do Doutor Bayard, Sugus, Chocolates “Sombrinhas”, queques, amendoins, favas fritas, Vinho Rosal, Rebuçados “Bola de Neve” e pastilhas “Gorila”, e tudo o mais que veio à rede. A única pista foi dada por uma testemunha anónima que viu um indivíduo, às três horas e dez minutos, com um caixote de produtos à cabeça, junto à linha do comboio. Consta que era o célebre Focas das Docas!
O assalto do Norte à Mercearia do Povo, de onde tinham gamado todas as pastilhas “Gorila”, tinha deixado o Sul de rastos e já havia registo de dissidências. A zona do Jota Pimenta, junto à Escola Náutica, tinha-se organizado na “Associação Popular Maria Armanda”, que adoptara como hino “Eu vi um sapo”, e proclamava agora as virtudes revolucionárias da sua mártir com cara de sopeira, por todos os cantinhos do bairro.
- Temos de conter a fúria popular, – avisou o Titó aos camaradas reunidos de emergência na cave do Coreto. – Eles andam a mostrar ao povo um adivinho de nome Zé Preto, que faz prognósticos sobre o futuro, que é muito negro para o nosso lado.
- Esse bruxo é um impostor do Norte, camarada, – interrompeu o Balacó. – Anda para aí a dizer que um tal de Aníbal, que anda a cavar batatas no Algarve, irá ser Presidente da República.
Mas o caso era grave, muito grave, porque senão a Dona Maria das Bicicletas não tinha aparecido de rompante no Coreto, ficando encravada na porta. Bastou o busto para intimidar os camaradas.
- Sabem onde fica a Sibéria? É para lá que vão senão meterem o povo em ordem.
O talento tribunício do Ánhuca ecoou por todo o Norte, mostrando o seu talento e agilidade, e a energia invencível do mito.
- O povo do Sul “está desordenado e é fraldiqueiro”. O do Norte ruma à vitória. O nosso lema é “ética de trabalho, secura de verbo e abundância de lágrimas”. “A vida é rápida, desavinda e selvagem”, gritava, ao mesmo tempo que ia soletrando os números 39, 69 e 74 das Pastilhas “Gorila”, coleção “Frases Célebres”.
Era uma reação inconsciente às mudanças que se verificavam na sociedade no que se referia aos costumes sexuais, com a emancipação das ovelhas. O Titó gritava que a Lanzuda era do povo e prometia vir um dia tirá-la das mãos dos fascistas. Estes discursos inflamados com promessas de sociedades opostas denunciavam a cisão profunda que a Revolução dos Cravos tinha feito neste cantinho da Costa do Estoril. Foi tudo isto que levou o Capitão Porão a abrir um apartamento de psicanálise para adolescentes, tentando com isto minorar os estragos causados por um acontecimento imprevisto. Ele tentava manter os pequenos imberbes longe deste conflito entre a superstição e a crendice do Norte, onde os valores e os seus instrumentos de poder não podiam ser postos em causa, e a “cientologia” e a fé do Sul, que proibia proibir.

07
Ago17

1ª Temporada - O Poeta Fernindó (8)


Comandante Guélas

 

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Episódio 8

 

O Poeta Fernindó

 

Os 120 anos da morte de Fernindó foram aproveitados pelas duas comunidades desavindas. Todos sabiam que na barraca dos herdeiros, filhos da meia-irmã (da cintura para baixo), havia cerca de 500 documentos, a maior parte bocados de papel higiénico com poemas, cromos, listas de gamanços e apontamentos diarísticos, todos em tom pastel numa das faces. O Sul pretendia levar tudo isto para o Comité Central e daí para a URSS, e o Norte prometia depositá-los no Núcleo Central do Chalé da Merda, a mais bem gerida casa da cultura da Costa do Estoril, o único lugar condigno na vila para receber toda a arte rupestre de Paço de Arcos. Pelo meio estava o sempre presente Pierre Pomme-de-Terre, figura central de todo o PREC da vila, que sabia do valor destes documentos, ou seja, nunca tinham sido inventariados por terem ficado de fora do arrolamento feito pelo ministro da Educação português nos finais dos anos 60, o Saraiva. Se levasse os poemas do Fernindó para o estrangeiro, vende-los-ia por uma fortuna. Foi por isso que contactou de imediato os agentes do Sul na Leitaria do Manuel e à noite já estava na cave do Coreto da Avenida.
- Camaradas venho aqui, mais uma vez, oferecer os meus préstimos à causa popular. Sei que estão interessados nos 500 pedacinhos de papel do grande poeta “paçoarquiano” e eu vim para vos ajudar a ganhar esta batalha. Tenho em minha casa uma arca onde poderão guardar, em segurança, os documentos.
- Obrigado camarada, você tem sido incansável na causa popular, - disse o Titó lavado em lágrimas.
- Eu pelo partido até dou a minha vida, - exclamou, esfregando as mãos.
Na Leitaria mais famosa da vila um novo residente apresentava-se à sociedade dos dois lados, com os olhos brilhantes.
- Eu sou o Alice, uma imitação do Cooper, e acabei de ser corrido de Angola pelos pretos. Trago novos ares para a vila, - e mostrou umas ervinhas. – Chamam-se “charros” e dão cá uma pedrada.
- Pedrada?!! Eu não quero violência no meu estabelecimento, - avisou o proprietário apontando para a tabuleta que tinha escrito “Lugar de Coexistência Pacífica”, que estava junto a outra que dizia, “Não se fia nem a Comunistas, nem a Fascistas”.
- Calma meu, “pedradas” sim, mas tudo numa onda boa! – Esclareceu a imitação do Cooper.
- Vêm para aqui estes retornados com linguagem de pretos! – Resmungou um Fascista, que foi de imediato apoiado por um Comunista.
A concentração ética e poética do que de mais fecundo havia em Paço de Arcos tinha um nome, Fernindó.
- A obra dele representa a cruzada da liberdade contra os tiranos, – disse o Pierre Pomme-de-Terre apontando o dedo para Sul, recebendo a concordância do Craveiro Lopes. – Venho aqui oferecer a V. Exa. os meus préstimos para uma “Pausa Cultural”.
- “Pausa Cultural”?!!
- O Norte e o Sul unidos pelo Fernindó. Se mantiverem a guerra os 500 poemas poderão desaparecer para sempre e ambos serão os responsáveis perante o povo.
A mensagem tinha passado, já se falava numa “Trégua Cultural” e um Capitão oferecera o seu andar para uma “Casa Fernindó”, onde se iria falar de poesia, literatura e exibir filmes da guerra colonial em Cabinda a adolescentes, uma imposição do militar.
- A minha guerra aos tenrinhos também é cultura, – explicou com uma voz de macho aos representantes das duas partes em confronto, que se tinham reunido na Leitaria.
- Os papéis poderão assim ser consultados e cheirados por todos, – disse o Ánhuca, mostrando os buracos que antes do 25 de Abril tinham estado ocupados por dentes.
- Vamos organizar uma mesa redonda, e o Escoto irá gamar uma das câmaras da RTP ao pai e transmitir a sessão para toda a vila, através da antena do Vasquinho, com a ajuda móvel do Jorge Monhé na sua acelera e do Zé Maria Pincel na Hércules, – interrompeu animado o Titó.
- Mas onde é que vamos arranjar uma mesa redonda? – Perguntou o João da Quinta, pondo o dedo no ar.
- Com a Revolução todas as mesas fascistas, que eram quadradas, passaram a ser denominadas redondas, – respondeu-lhe, irritado, o representante do Sul.
- Olhe que não, olhe que não! “Mesa Redonda” é um conceito marxista que nós repudiamos, – disse de rajada o embaixador do Norte.
- Eu proponho um projecto para a criação de uma “Revista Comum”em que uma metade é reservada ao Sul e a outra ao Norte. O nome será “Pica Hic”, – interveio o Capitão, pondo água na fervura.
- “Pica Hic”?!! Mas que nome tão pouco revolucionário, - interrompeu o Titó.
- Eu direi que é um nome apaneleirado, – exclamou o Ánhuca.
- Falaremos disso na “Mesa Triangular” que será realizada na sede velha do Clube Desportivo de Paço de Arcos, – informou o militar abandonando, um pouco irritado, a reunião.
O Comandante Guélas recebeu a notícia com agrado, pois iriam encher o território inimigo com dezenas de combatentes, tudo à conta da “Mesa Triangular” do génio militar que tinha vindo de Cabinda. O senhor Bakaus foi contactado para animar o evento e os convites entregues ao carteiro mais famoso da vila, o Kurtis, que se responsabilizou pela sua distribuição. E foi numa dessas ocasiões que deu de caras, já ao anoitecer com o Zé de Porto Salvo e o seu grupo de escuteiros.

06
Ago17

1ª Temporada - O "Cantinho das Putas Velhas" (7)


Comandante Guélas

Episódio 7

 

O “Cantinho das Putas Velhas”

 

Praia Caxias.jpg

 

 

À medida que a Revolução dos Cravos avançava, a amizade entre o jovem Bajoulo e a menina Tita dos Pés Sujos parecia cada vez mais madura, profunda e indestrutível. Mas ambos revelaram-se incapazes de fugir ao destino, apesar da pujante herança genética do macho. Era dia de Comissão de Moradores e todas as atenções estavam viradas para o Clube Desportivo de Paço de Arcos. Todas?!! Todas não, pois havia um derby no Real Campo de Vila Fria, propriedade do Abromobatatinha, junto à lixeira. O encontro era de gigantes, os “Burrinhos da Pradaria”, clube centenário da parte de cima da linha iam defrontar o “Estrela Vermelha da Avenida” da parte de baixo da linha.

 

- Hoje jogamos o ópio do povo, amanhã o novo jogo a pares inventado pela classe trabalhadora, com frigideiras, bola de ténis e rede, - disse o Labumba, apertando a mão ao adversário. 

Enquanto isso na Leitaria do Manuel conspirava-se baixinho, à medida que se enfiavam umas bejecas pela goela abaixo ao som do barulho das novas bolas mecânicas da máquina de flippers. Os do Norte davam os últimos retoques nos planos do novo ataque com Litopone, enquanto que os do Sul concluíam os retoques finais da tomada do poder com a “palavra”. A tradição cumpria-se com mais uma primeira parte de um jogo a chegar ao final sem a intervenção externa do apito. Pela milésima vez o Henrique da Rebelva, que iria encarnar anos mais tarde no Chico Marinheiro, tinha atingido a “redline” e queimara as juntas da cabeça, colando-se à sombra do jovem Fininho, que estava impecavelmente vestido com um equipamento preto de ciclista, comprado na “Maria das Biciletas”. O estado de alma do Henrique da Rebelva refletia-se no fumo que lhe saia pelas orelhas e na cor avermelhada que lhe forrava a “fácies”. Estava à beira de um ataque de caspa! Ao longe adolescente Marinheiro, impecavelmente vestido com um equipamento do Sporting, comprado no Cabrita, que incluía meias e chuteiras verdes do Ánhuca, tentava trazer o adversário para a realidade, sabendo de antemão que tal seria impossível, porque uma vez o mal instalado nos genes, não havia nada que conseguisse apagar o tal risco profundo que, em quase todos os jogos desta liga milionária, colocava o Henrique da Rebelva à beira do precipício.
- Não lhe ligues, o Fininho é assim mesmo! - Iria dizer também mais tarde ao seu filho Chico.
Mas nada demovia o colosso de estar colado à sombra do “tio”. O mal dele era ter ido para o curso de Logística de Mulas. Desde esse momento o tio Fininho tornara-se muito exigente com os estudos do Henrique que trocara os livros pelos copos, fazendo-lhe interrogatórios massivos sobre o comportamento da “Carreira para o Pimenta”. Pelo meio ia-lhe agradecendo os golos que teimavam em entrar na baliza da equipa de que o colosso fazia parte, tendo como companheiro o inebriante Milhas, que teimava em dar orientações táticas desde que o apito assinalara o início da partida. E no calor da discussão ninguém se apercebeu da saída intempestiva dum careca de meia-idade, que tinha atingido o prazo de jogabilidade, em virtude de ter sido traído pela “claustrofobia por espaços vastos” que o impedia de respirar, compensando o défice com escarretas fininhas. Pelo meio o Celestino, que encarnaria mais tarde no médico com cabeça de ananás, sobrinho do Chico Sá, do Espalha e do Peidão, interrogava o Pequeno Polegar, de nome de guerra Biblot, sobre os motivos que o levavam a ir sempre disputar as bolas altas nas Grande Áreas. Mas o assunto da jornada era a grandiloquência do Henrique da Rebelva, que teimava em rosnar junto ao adolescente, enchendo-lhe o fatinho de perdigotos, e isso o jogador Fininho não tolerava:
- Não me diriges a palavra com a boca cheia de azeitonas, – indignou-se o jogador com equipamento de ciclista, apontando um indicador ameaçador.
E nisto uma bola tresmalhada passou a rasar a cabeça do Milhas. Tinha sido o Octanas, que iria encarnar décadas depois no Ruben, que ainda não se apercebera que o jogo estava em “pausa”.
Lá em baixo, muito em baixo, o Titó dava uma martelada na mesa para dar inicio a mais uma sessão de povo, muito em voga nestes tempos quentes.
- Recebi uma proposta de um camarada do lado esquerdo da bancada, que propõe retirar o direito de voto aos moradores dos chalés, - gritou o imparcial Bill, aplaudindo a ideia. – Quem vota a favor?
Muitos dedos no ar.
- Quem vota contra?
Muitos dedos no ar.
- A proposta foi aprovada por maioria.
Aplausos de um lado, insultos do outro, um dedo no ar no balcão do meio.
- Tenha a palavra o cidadão Ratinho Blanco.
- Amigo e companheiro Torres Merda ( o Estaline da Avenida), com esta resolução os moradores dos chalés deixam democraticamente de ter direito ao voto?
- Correto e afirmativo!
- Então vai haver aqui uma maioria silenciosa?
- Minoria, quer V.Exa. dizer. Uma minoria de fascistas, que moram em chalés.
- Mas eu também moro num chalé, nas pedreiras. As barracas também são vivendas, que em vez de relva têm couves.
Estava lançado o caos. O agente encoberto do Comandante Guélas, o cabo Ratinho Blanco, lançara a confusão no meio do povo e já ninguém se entendia. O Sul perdera mais uma batalha, desta vez a “Intelectual”. Tentaram contra-atacar com a idade de voto, mas só pioraram a situação.
Em Vila Fria dava-se início à segunda parte do encontro.
O tempo era de mudanças, os jogadores formados na Praia de Carcavelos pelos misteres Choné, que alugava a bola, e C. Gomes, com o esgoto a servir de linha lateral, estavam cada vez mais fortes . E esta característica fazia toda a diferença neste tão popular desporto de “fim-de-semana com autorização escrita das mulheres”. Mas havia alguém que andava com a cabeça à roda por causa dos tenrinhos. Eles tratavam-no com respeito, diziam “sim” aos seus convites para tertúlias em sua casa, onde viam sessões contínuas de filmes de Cabinda:

- Ouviste o eco? - Perguntou o Chico Sá quando a bola bateu em cheio no bumbum do capitão.

Os tenrinhos até o tratavam por “Tio Porão”! Ao aceitar o lanchinho do Capitão Porão, o Chinoca revelava não estar com a lucidez necessária, nem nunca ter ouvido falar da história do “Capuchinho Vermelho”. Foi preciso passar algum tempo, deixar baixar a poeira, ganhar a distância, para que os amigos o confrontassem com a verdade. Este “inocente” convite do militar de abril mudou para sempre a carreira futebolística deste jovem asiático e veio mostrar o fosso que separava aquelas duas gerações de “profissionais” da bola. O jovem não estava habituado a deparar-se sempre com um defesa adversário que protegia a sua área e a bola de costas viradas para ele. E tantas foram as vezes com que se deparou com um “bumbum” a convidá-lo para a luxúria que, tal como a Leonor do poema, acabou por partir-lhe a bilha. Por momentos aqueles dois corpos, um tenrinho e o outro com caruncho, moveram-se, agiram, num único movimento sussurrante, tocando-se levemente no ar, num gesto que se aproximou dos outros coxos, com um virtuosismo técnico tão elaborado, que fez com que ninguém visse que o Milhas tinha tocado com as duas mãos na bola. O reencontro do Chinoca com o Capitão teve uma sensibilidade poética, que levantou a dúvida quando se deu o contacto do corpo rançoso com o solo e dele saiu um grito alucinante com diferentes interpretações:
- Foi um gostinho, – disse o Fininho.
- Deu o berro, – atirou o Chico Sá.
- O Capitão é que se esborrachou, mas o Milhas é que está a delirar, – exclamou o Peidão.
- É falta do velho! – Sentenciou o único jogador lúcido, o Alfredo do Pombalino, sobrepondo-se à decisão do árbitro que estava ao seu lado, a tentar soprar no apito que tinha entupido com um pedaço de tremoço servido pelos representantes do Sul, no intervalo
O caso não era tão simples e natural, tinha agora uma dimensão metafísica. A imagem dum capitão de abril esticadinho no pelado, estilo bacalhau, iria ficar gravada para sempre nas memórias de todos, como um momento único, desarmante. Mas ninguém se apercebera das terríveis consequências, ao nível político, que este espetáculo, simples e natural, iria ter sobre o PREC. Dali para a frente tornaram-se diferentes.
- Celestino, leva-me a casa!
Todos imaginaram a entrada do militar em casa ao colo do preto, tal qual um par de recém-casados. A recusa do contemplado foi imediata e as atenções voltaram-se novamente para o Chinoca, que tentava escapulir-se da zona do acidente.
- Eu vim de mota, – desculpou-se, abrindo os braços.
- O ferido não se importa de ir sentado de lado, muito agarradinho, – esclareceu o Chico Sá.
Quem ajudou o Capitão a instalar-se no Mini e a desenrascar-se a partir daí foi o Choné, um jogador com uma perna-de-pau e uma franja que fazia as delícias de todas as fêmeas da Costa do Estoril. Quanto ao capitão, não teve outro remédio senão pendurar as chuteiras durante umas semanas, junto às recordações de África, as caveiras de antílopes e as cabeças em pau-preto, com as cuecas do pelotão! O Norte do Comandante Guélas saia deste jogo com uma estrondosa vitória sobre o Sul vermelho. A notícia caiu que nem uma bomba no “Manuel da Leitaria”. A zona dos flippers comemorou, a zona da bisca lambida chorou. O agente duplo Pierre Pomme-de-Terre deu a notícia aos homens do Coreto, que já estavam de rastos com os acontecimentos no Pavilhão do “Jota Pimenta”.
- Os fascistas não podem ganhar a guerra, é injusto meu Deus, - gritou o Balacó pondo-se de joelhos junto a uma virgem meteorológica com uma vela acesa, para lhe manter em permanência a cor vermelha.

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