2ª Temporada - Retiro Espiritual (23)
Comandante Guélas
23
O Milhas, antes da revolução do Comandante Guélas, era o adolescente mais infeliz da vila por ter um gang de dez irmãos como vizinhos, e mais infeliz ficou quando, após a tomada do poder pelo Querido Líder, continuou a ter os mesmos vizinhos. Na rua de cima habitava Mac Macléu Ferreira, dono de uma soberba mota de competição, cujos acessórios eram feitos com tábuas das caixas de fruta que o Zé dos Porquinhos deitava para o lixo. E a máquina era tão potente que ele tinha de ajudar com os pés de cada vez que regressava a casa. Por isso o Comandante Guélas declarou-o “património imaterial da Humanidade”, e o Milhas protestou:
- Porque é que eu vim para este mundo!
E como o calibre dos outros adolescentes da Juventude Guéliana era equivalente, o Querido Líder arranjou um retiro espiritual para a mocidade da vila: São Quintino!
- Não quero que os jovens ponham em causa os severos princípios da moral. Temos de ser um povo eticamente irrepreensível.
E foi numa dessas ocasiões que o Caveirinha viu a vida a andar para trás, pois o Focas conseguiu a proeza de fazer com que uma aldeia perseguisse um veículo cheio de peregrinos, com o intuito de pendurá-los num poste, com o carro incluído. Recuemos um pouco!
O senhor Américo nem queria acreditar no que via. Do Citroen GS Carrinha AT-66-70 saía cada vez mais gente, arrumada no meio de uma quantidade infinita de malas. Como já era tradição, antes de qualquer viagem tinham de picar o ponto no “Pica”, o café mais in da vila, o berço da maior parte dos adolescentes nascidos nos anos sessenta, que largaram os biberões por altura da Revolução, e que as únicas pistolas que dispararam foram aquelas com que vieram ao mundo, uma tentação para um capitão, vindo diretamente da Quinta Divisão para tentar ensinar aos petizes a arte de manejar as ditas. Em São Quintino passava-se sempre o mesmo, pregar cagaços atrás de cagaços ao mais jovem elemento do gang dos dez irmãos, que tinha substituído a terrível figura do Papão, tão comum no resto do país, pela do Peru que o obrigava, nas noites em São Quintino, a dormir com a luz acesa. Nestas ocasiões os cortes de energia eram constantes, e a confusão permanente. Recuemos! O senhor Américo agradeceu aos céus quando viu o carro partir, pois algumas ovelhas negras do rebanho acinzentado iriam estar ausentes da vila, e isso significava alguma paz e tranquilidade. Quando entraram na marginal, o Focas deu um flato tão grande que obrigou os amigos a permanecerem com a cabeça de fora até à praia de Caxias. A condução era feita a meias, não que o Caveirinha, o motorista, saísse do lugar, mas sim porque o Focas, o copiloto, tomava conta do volante para que o amigo pudesse fumar calmamente um cigarrito. Quando já estavam mais perto de Torres Vedras do que de Paço de Arcos, para descanso desta e azar da outra, o Focas pediu para pararem junto a um café, onde estavam todos os habitantes de uma aldeia. Abriu o vidro e levantou o braço a pedir ajuda. O Caveirinha pôs ponto-morto, puxou o travão de mão, acendeu um cigarrito e encostou-se à porta. Ninguém questionou a estranha necessidade do amigo em querer entrar em diálogo com os autóctones.
- Por favor, - chamou, com o sorriso mais doce, os olhos mais brilhantes e a voz mais meiga de Paço de Arcos.
Um adulto aproximou-se do carro dos “camones”:
- S'il vous plait, le chemin pour Sintra?
Perante tão prestável ajuda do autóctone, o Focas fez mais uma:
- Qual de vocês quer levar no cú?
Por momentos todos ficaram num estado sem tempo, imóveis e mudos, sem vontade e sem pensamento. O Caveirinha, que já estava meio a dormir, acordou sobressaltado, o buço do aldeão levantou-se e atrás dele veio o lábio, ficando à mostra o único canino existente. No fundo dos seus olhos viam-se clarões raros, os amigos, primos, tios, pais, sobrinhos e vizinhos, absorveram a pergunta. O Focas manteve o sorriso angelical, porque o tempo ainda não passara por ele, o amigo motorista correu em pânico para o acelerador, depois de ter engolido a beata, as amígdalas do autóctone eram agora visíveis por todos, os vidros das portas subiram a todo o vapor, a populaça começou a reagir. De repente toda a aldeia ganhou uma velocidade de movimentos, unida às raízes da sua raiva, pela urgência de uma justiça rápida que pendurasse os forasteiros e o carro no poste mais próximo.
- Arranca, - gritou o Focas quando sentiu o bafo da aldeia.
A confusão era tão grande que o Caveirinha não conseguiu enfiar, durante breves, mas potencialmente fatais, segundos, alguma mudança. Fugiram in extremis com um exército circunspecto e severo no seu encalço, disposto a cometer um crime.