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A primeira carta de condução a ser entregue pelo Querido Líder de Paço de Arcos, o Comandante Guélas, foi ao adolescente mais inquieto da vila:
- Quero agradecer à Escola de Condução do Cruz, não da Jomarte, que só me tirou as fotos para a abertura do processo, mas sim do Campo Pequeno, - agradeceu o jovem Pilas na sessão de entrega que decorreu na Sede do Clube Desportivo de Paço de Arcos, e continuou. – Não precisei de ir a nenhuma aula teórica, e às práticas fui a poucas, pois já tenho a escola toda desde tenra idade.
O padrinho Cruz, que adotara grande parte dos estudantes de Paço de Arcos, confirmava sempre as presenças antes de se marcarem os exames na DGV. Eram estas as condições por se ter morada na região mais importante da Península Ibérica, a encantada vila de Paço de Arcos, onde praticamente todos conduziam desde os 10 anos. O analfabruto do pai do João da Quinta nunca teve a carta, mas isso não o impedia de fazer coleções de motas e carros. Até ao dia em que o filho lhe tirou um dos bólides da garagem, com a ajuda dos amigos, que pegou engatado lá para os lados da vacaria. A viagem foi sempre a abrir até Caxias, onde acabou abruptamente de encontro a um carro estacionado, depois do João da Quinta se ter distraído com uma moça de bigode que passeava atrevidamente, com os pelos das pernas ao léu. O facto de ele guiar em pé, para poder ver a estrada, também não ajudou muito. O Cociolo, que ia no lugar do morto, bateu com a testa no vidro, tendo acordado o monstro que o habitava desde a nascença. Segundo o Graise, um expert na matéria, que estava sentadinho atrás do motorista e se apoiou na sua cabeça, para não ser projetado contra o cabelo oleoso e cheio de penas de galinha, “as consequências para a saúde mental do Cociolo só se tornaram visíveis anos mais tarde, quando ele demonstrou enormes dificuldades em ultrapassar a adolescência”. Carro imobilizado, fuga imediata! Foram todos? Todos não, restou o filho do proprietário do veículo, momentaneamente impossibilitado de se mover, porque o seu único neurónio estava atordoado devido ao impacto do Graise, sendo por isso incapaz de enviar uma ordem de jeito às pernas.
- Quando chocámos ainda o ouvi gritar, “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheio de traça”, – disse o Peidão para o Pontas durante a fuga em direção à casa do Jorginho, que dava nessa noite uma festa, com a presença do irmão adotivo, o Alice, que tinha vindo com a Descolonização e trouxera com ele os primeiros de muitos charros que iriam colonizar a vila e acelerar a ida para a cova a muitos.
Quando a populaça deitou a mão ao João da Quinta, ele ainda não tinha recuperado a consciência de si próprio e da coça que iria levar do pai. Dito e feito, foi obrigado a ir ao “pão por Deus”, cujos fundos iriam reverter para o arranjo do “Ford Taunus Carrinha Verde Alface”.
A carta de condução do Pilas deu direito a tudo, até para alugar um carro marado numa agência clandestina, enchê-lo de amigos e de malas, e rumar ao Algarve prego a fundo, com o Botelho a mandar vir por causa da posição da mala: estava virada a Sul e ele queria que ela apontasse para o Norte Magnético. Mas na véspera da viagem para o Algarve, o Focas despediu-se dos amigos atirando o “chaço” do Mayer, que estava estacionado lá no alto, “meio-abandonado meio-com-dono”, pela rua abaixo. Foi-lhe aplicada a lei de “barcos vazios no alto-mar” e a porta aberta contribuiu para a entrada, mas o volante trancado queria impossibilitar o passeio. O estudante Focas estava na máxima força, representava o produto final de uma mistura desportiva explosiva, Boxe, Karaté e Pica, era o “Cassios Clay de Paço de Arcos”, tinha enfiado um meia leca que se intitulava, não Tarzan Taborda, mas sim Rui Nazi, dentro de uma montra, por isso tanto torceu o volante, que ele cedeu e ficou a descansar no seu colo, soltando tantas chispas que todos pensaram serem foguetes das Festa da Vila. A corrida começou de imediato mal o travão-de-mão deixou de cumprir a sua função. Estavam no alto, não precisavam de motor para nada. O “chaço” atingiu a velocidade do som logo na reta e quando fez a primeira curva, todos se aperceberam que o Focas não fazia questão de usar os travões. Iria até à desintegração total. O Caveirinha abandonou de imediato o “Ferrari”, o Graise também, o Pontas “idem aspas, aspas” e quanto ao Peidão, que ia no meio, não conseguiu sair, porque o estudante Focas já tinha encostado o carro a um muro e impossibilitou-lhe a fuga. Só se viam fagulhas a sair do bólide. E eis que, contra todas as expetativas, o motorista guinou o volante, obrigando o Renault a fazer um ângulo de 90º, ficando de frente para o muro do jardim dos senhores doutores vermelhos. O Focas saiu como se tivesse carregado num botão de ejeção automática e o Peidão escapuliu-se no limite, conseguindo ainda ver, do ar, o embate do carro no muro. Um levantou as quatro rodas e o outro abanou como uma bailarina. Durante uma fração de segundos reinou o silêncio. A maioria estava borrada, apesar de estarem quase todos na fronteira para a idade adulta, e como tal responsáveis pelos seus atos. Mas como o período ainda era de revolução, poder-se-ia sempre dizer que tudo isto consistia num protesto contra os “chalés burgueses”, mesmo que todos habitassem em chalés, e este muro em questão pertencia a pessoal íntimo e amigo do Bill. A rapaziada dispersou misteriosamente deixando o carrito, mas no dia seguinte o Renault estava a dormir profundamente dentro de um buraco de uma obra, lá para os lados das escadinhas da estação, com o rabinho para o ar e cercado de rudes trabalhadores, impossibilitados de cavar. Teria feito os últimos cem metros da vertiginosa descida por conta própria ou os meninos tinham-se reorganizado e acabado a tarefa a que se propuseram? Uma pergunta sem resposta, pois todos juravam que a sua participação nesta brincadeirinha de jovens recentemente libertados pelo Comandante Guélas, tinha acabado no momento em que o “chaço” marrara contra o muro. No dia da partida rumo ao Sul os turistas levantaram-se cedo, atestaram o carro com a gasolina desviada dos depósitos dos bólides dos social fascistas do Sul, e foram todos buscar o Botelho a Nova-Oeiras, que tinha feito um pedido especial de entrada com descrição na rua onde morava, pois o pai andava muito traumatizado, porque o filho insistia em marrar com o Mini de cada vez que saia de casa para ir passear com os amigos, lá para os lados de Cascais. Uma semana antes tinha conseguido chegar ao destino sem qualquer percalço e quando se preparava para estacionar o carro num parque lá para os lados do “Senhor Balão”, assustou-se com a salva de palmas que os amigos lhe dedicaram, tirou o pé da embraiagem e marrou contra o muro. Por momentos ficou um silêncio sepulcral, mas depois as palmas continuaram, mas desta vez para aplaudir a tradição e não a exceção. A entrada do Pilas foi à leão, o carro guinchava e fumegava por tudo o que era buraco, Nova-Oeiras veio toda às janela ver o filho do senhor doutor, que queria sair discreto.
- Obrigado Pilas, – agradeceu o Botelho, colocando a mala na bagageira, virada para Meca.
A viagem até ao Algarve correu sem incidentes, o carro foi sempre a ganir e os passageiros em farra permanente. O destino não contemplava nenhum acidente para estas datas, apesar de o estarem permanentemente a provocar. A primeira paragem foi na praia da Oura para pernoitaram em sacos-camas junto a uma falésia, onde recolheram após as duas da manhã à medida que iam chegando. O Pilas foi o último e, para manter a tradição, fez uma nova entrada à leão quando vislumbrou uma fileira de sacos-camas, correndo na sua direção com o freio nos dentes, onde fez uma chamada a pés juntos atirando-se em estilo “aí vai alho” para cima dos dorminhocos. As “bejecas” tinham-lhe toldado o sentido de orientação e enganou-se. Os amigos estavam na curva ao lado. Teve de acelerar e desaparecer na escuridão da praia, porque levava uma multidão atrás, pronta para lhe “fazerem a folha”. No dia seguinte a excursão rumou para a Torralta porque o Pilas, o único encartado, estava obcecado à procura da sua Olívia, uma dama da Linha, que tinha vindo para o Algarve com a família e deixara o namorado na capital. Mas o Graise não se conteve e gritou no banco de trás:
- Primeiros para a Olívia!
Caiu tão mal na alma do Pilas, que ele largou o volante e veio pedir explicações ao violador. Valeu a pronta intervenção do Mac Macléu Ferreira que deitou as mãos ao leme, mesmo sem óculos, conseguindo manter o carro fora-de-mão, mas na estrada. O ofendido voltou à posição inicial quando lhe explicaram que o Graise tinha este nome de guerra por causa da “travadinha” que lhe dera durante um jogo de basquetebol familiar 5x5, e que a partir daí fora sempre a descer, principalmente no que se referia aos comportamentos. Dissera “Olívia”, mas com o pensamento no cágado com que namorara uns anos antes, na célebre festa onde proclamara aos amigos solteiros que aquela festa “era só para orientados”. A chegada às torres manteve o mesmo estilo, com o bólide a berrar e a deitar fumo dos sapatos, com acompanhamento das vozes de seis “meninos de coro” das boas famílias “Paçoarquianas”, que iam pendurados nas janelas. Respirava-se liberdade e a “liberdade” significava “balda total”. O carro ficou onde parou e o sentido era só um, praia. Ainda a mocidade não tinha arranjado espaço para montar o acampamento e já o Pilas descobrira uma sereia em cima duma plataforma que estava ao largo.
- Será a Olívia! – Pensou.
Tinha prometido a si próprio que só pararia quando encontrasse a sua musa e isso implicava todos os sacrifícios, até fazer os 50 metros que o separavam da jangada.
- Vamos nadar até ali, - gritou, correndo para água.
Todos o acompanharam? Todos, não! O intrépido Botelho sentara-se na areia e recusava-se a acompanhar os amigos.
- Vou ficar aqui a ver as vistas, – exclamou com um olhar maroto, puxando a franja ensebada para o lado.
O Pilas nem queria acreditar quando, após aquele esforço hercúleo, deu de caras com um autóctone cheio de bexigas e cabelo oleoso a tocar nos ombros. Quando estavam prestes a regressar, chegou o garanhão.
- Então, afinal também vieste?
Como não tinha pescado nenhuma rola, resolvera vir tentar a sua sorte com o “Camarão da Torralta”. Mas não teve tempo para lhe ver o sexo, pois este mergulhou na altura em que o Botelho trepou. E agora não tinha forças para persegui-la. Neste, entretanto, apareceram, vindos das profundezas, o senhor Pilas e o estudante Graise, que deram aviso de retirada aos amigos, exceto ao garanhão do cabelo ensebado. A chegada à praia foi um pouco mais lenta porque a maré estava a vazar. Quando se sentaram na areia foram informados pelos dois mergulhadores de que três dos cabos que prendiam a plataforma tinham sido soltos. Era por isso que o amigo não passava de um ponto no horizonte. Só conseguiram reunir-se com o Sol já posto, foi essa a altura em que o último dos paçoarcoenses chegou a terra firme. A próxima paragem ficou marcada para os lados de Lagos, mais propriamente na quinta familiar de uma amiga. Quando apareceram na cidade deram de caras com outros artistas, gerando-se uma confraternização espontânea num restaurante com uma sereia à porta, que debitava água para um lago que molhava os seus formosos pés. A festa durou pouco, muito pouco, pois um deles resolveu tirar um dos mamilos da ninfa com o alicate que o Bajoulo usava para gamar motas. O dono nem queria acreditar quando viu que a estátua de mármore, de quem sempre se lembrava quando brincava aos índios com a sua Maria de bigode, não passava agora de uma pobre deficiente que nem para fonte servia, muito menos de inspiração. A debandada foi geral, Burgau foi o nome escolhido!