4ª Temporada - Libações Vínicas (6)
Comandante Guélas
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O Comandante Guélas, Querido Líder de Paço de Arcos, reconhecia sempre os comunas pelos pés, porque pisavam a vila de outra maneira. O Bill jogava um futebol diferente do dos amigos. O Sarapito e o Kid Aromas, sempre perfumado e com verniz nas unhas, eram dos últimos homens temperados de Paço de Arcos, cuja única tarefa que tinham na vila, em comum com o Milhas, era a verdade de si mesmos, por isso um dia o Querido Líder declarou-os, ao acordar com uma ressaca de remédios, Patrimónios Imateriais de Paço de Arcos! O Ánhuca vivia na mais absoluta escuridão, por isso as amizades íntimas que fez foi com as galinhas do Manelinho da Carroça, que cobria tudo o que mexia em casa, incluindo a filha, pois a mulher tinha-se pirado com um chui. O nascimento do Zé Luís era um mistério, assim como a sua morte. Diziam que era tetraneto do Napoleão Bonaparte.
- A violência não lesolve nada, - gritou o patrão chinês do Alfredo do Pombalino quando viu o Generebete a apertar com violência o pescoço do Espalha.
- Aposto que não dizias isso se descobrisses que a tua mulher andava a mudar o óleo a outro.
O cornudo metera na cabeça que o futuro sobrinho do Isaltino andava a servir-se da sua Becas, que cheirava mal dos pés. O sonho de dar a volta à vila num Lotus 7 esfumara-se de um dia para o outro e levara-o a dedicar-se a uma valente libação vínica.
- Bebe um copo de água branca que a dor de corno passa, - aconselhou o empregado do asiático, ajeitando a popa. – Ou um café preto!
Não muito longe dali o Pipi acusava a mãe do Pingalim de lhe ter vendido um garrafão de tinto marado, com sumo de uva, óleo das motas do Cabrita e sobras dos pés da Maria das Bicicletas, que lhe tinham toldado o espírito, que o tinha feito chocar com um elétrico em frente à padaria.
- Elétrico? Era um compressor! – Explicou o Guélas.
Foi o suficiente para o Pipi confundir o Querido Líder com uma mini, e tentar tirar-lhe a carica. Para a História a cena ficou registada como o Atentado de Camarate que quase ia vitimando o Comandante, e cuja culpa fora atribuída àquele que ainda não aceitara a nova ordem: o Bill. Na esquina do Manel da Leitaria o Capitão Porão estava em rituais de transição com um adolescente:
- Passa para cá as chaves do ninho, - exigiu o jovem chinês. – Hoje tenho uma cabrita ao serão e só regressas a tua casa quando eu puser um lençol na janela.
- Não te esqueças de tirar a deusa Minerva da cabeceira da cama, não vá ela cair novamente na cabeça da cabo verdiana.
Mas a estória do momento era o casamento do Peidão, que levantava um problema logístico grave, não havia lugar para toda a elite da vila na mesa do almoço. O Querido Líder fez uma fatwa que correu com as madames de cabelo à “Moisés”, fatos a cheirar a naftalina foram banidos, assim como as pérolas de plástico, cachuchos de roscas e prendas miseráveis, as criancinhas penduras não faltavam ao infantário, e às tias da aldeia prometia-se enviar os restos em “tupperweares”. A festa assim rejuvenescia e com toda a certeza que seria muito mais original. Mas nunca ninguém imaginou o quanto original ela iria ser, nem o próprio Hitchcock! A autorização para mais uns quantos foi dada na véspera e o Peidão convidou todos e mais alguns, prometendo arranjar lugares disponíveis. Até o Bigornas trouxe um coirão que ninguém conhecia, mas que ele insistia ser a namorada de há muito, esquecendo-se de que na vila havia unicamente registo da eterna Kika, uma alemã que só se lembrava do namorado quando precisava de alguém para lhe levar a bilha de gás da porta de entrada para a cozinha, nas traseiras, cruzando-se sempre com o Camaleão, irmão do Estalinho, que acampara à porta da Lentes, dentro dum “Mustang” do pai, que dizia com orgulho ter em casa “quatro matulões”, esquecendo-se que o filho Trovão tinha um metro e meio. Os convites de última hora foram feitos como os primeiros, de boca em boca e à porta do Pica, porque para os noivos poupar nas mariquices dos convites significava mais lugares à mesa para os amigos. Mas mesmo assim ficaram muitos esquecidos e alguns traumatizados. A boda teve lugar na Quinta da Granja em Sintra, e para o Orlando, o comandante, este era o dia mais feliz da sua vida, pois talvez estivesse aqui a grande oportunidade para progredir na carreira: dar todo o conforto ao filho do chefe! Na véspera do grande acontecimento paçoarcoense fez uma visita guiada às instalações, incluindo a ala mais in do palácio, os aposentos “reais” datados do século XVII, recentemente restaurados, e colocados de imediato à disposição dos noivos, para que os inaugurassem a seguir à boda. Até a retrete, onde muitos nobres tinham arriado faustosos cagalhões, se encontrava recauchutada e selada para os fundilhos do Peidão. Mas ao noivo, que não ligava muito a estas mariquices da História, o que lhe chamou à atenção foi o corredor dos aposentos dos oficiais, paredes meias, que estava forradinho de extintores, um por cada porta.
- Se vêm aqui, o Orlando manteigueiro será despromovido e passa a ser o Cabo Pilas, - pensou. – Vamos ficar longe destas tentações!
Como já era de prever a chegada do noivo foi acompanhada de um coro, de “Peidão” e muitos “Peidão”, que se estenderam à cerimónia na igreja, felizmente dirigida por um paçoarcoense padre que teve o bom-senso de acelerar o ritmo.
- Se queres falar com o meu irmão, até às 20 horas está no convento e depois passa diretamente para o bordel, - dissera aos noivos um mês antes o adolescente Sarapito, quando estes escolheram o seu mano para lhes abençoar a vida de pecado.
E os gritos foram tantos que os meninos de boas famílias de Paço de Arcos ficaram com as goelas secas, vendo-se obrigados a porem-nas de molho mal tiveram oportunidade. O avô do noivo, pioneiro da aviação, juntou-se à festa e levou um amigo que conhecera, o engenheiro com cara de leitão. Nunca mais ninguém os parou! E foi nesta altura que um oficial da base foi encurralado na casa de banho, pois resolveu ir arrear o cagalhão minuto antes de um lote de meninos ir verter também as suas. Quando descobriram, por baixo da abertura da porta do cagatório, os seus sapatos e as calças em baixo, aproximaram-se. O Graise bufou-se durante meia hora e no intervalo entre cada petardo o Velhinho batia e gritava:
- Então, então, estão aqui crianças!
O de lá nem tossiu nem mugiu, e assim ficou até que os copos dos meninos ficaram vazios e tiveram de ser recarregados. No andar de baixo a festa ia rija, o Pilas cavalgava pelos vastos corredores do palácio, enquanto que os noivos apanhavam a seca do costume, fotos e mais fotos com aves raras pelo meio. O fotógrafo era o irmão do Bigornas, e como o noivo não lhe prometera nada, exceto um almoço à conta dos sogros, simulou fotografias que nunca chegaram a aparecer. No final aconteceu aquilo que o Peidão temia!
O Vaca Prenhe, cunhado do noivo depois de ter presenteado a Dona Ludres com um netinho fora de tempo, o Cabeça de Ananás, resolveu praxar o Peidão nos aposentos reais. Um minuto depois de entrarem entrou também a boca dum extintor, comandado pelo Graise, que encheu o espaço de um nevoeiro cerrado, obrigando metade do gang a refugiar-se no wc selado. E selado ficou, porque aproveitaram a confusão para verter águas para onde estavam virados. Do quarto saia fumo branco, não porque houvesse Papa, mas sim porque todos os extintores estavam agora vazios. O Orlando não podia atuar, e por isso teve de ir o chefe que colocou todos os “meninos de boas-famílias” no exterior para minimizar os estragos. E naquela zona havia uma grande piscina atestadinha de água cristalina, que foi para onde se dirigiu a rapaziada para se refrescar. Um minuto depois já havia jovens em cuecas a voar da prancha, incluindo a mulher do Peidão que foi atirada de vestido de noiva. O ponto alto desta banhada coletiva foi quando o Pilas baixou as cuecas e ofereceu a fruta a uma velha que espreitava escandalizada num canto do edifício:
- O que tu queres está murcho, - gritou o adolescente que, para constituir família, teve de ir viver em reclusão para o Porto.