5ª Temporada - Escaras Vermelhas (10)
Comandante Guélas
10
O Bill tinha dois desejos, visitar o mausoléu do Lenine na Praça Vermelha, e o quarto onde Jacinta passara 12 dias (21 de janeiro a 2 de fevereiro), no Mosteiro do Imaculado Coração de Maria das irmãs Clarissas, antes de ter sido internada durante 18 dias no Hospital Dona Estefânia, onde faleceu. Para ele este era o local onde sentia mais de perto o amor da sua vida, a Lúcia, que tantas vezes lhe vinha à memória quando lia uma “Gina”. O estranho fetiche de uma “menage à trois” com o ateísmo e a religião atormentava-o desde o 25 de abril, por isso pensamentos destes faziam parte do Índex do Comandante Guélas, que os classificava como “Escaras Vermelhas”, que tinham de ser erradicadas da superfície da vila no Campo de Reeducação dr. Ánhuca na Terrugem de Cima. Estava o Bill perdido em pensamentos libidinosos com a pastora quando alguém lhe tocou nas costas:
- Já casou?
Virou-se e deu de caras com o poeta Henrique, não o Castanho, mas o da Rebelva:
- Sim, - respondeu.
O artista riu-se feliz e exclamou:
- Teve sota!
E entrou no quartel da Medrosa:
- Ó amiga! Tem bivaque?
Como bom comunista este encontro era uma boa ocasião para ser visto lá de cima pelo Vladimir e a Jacinta, para que intercedessem por ele em Paço de Arcos, pondo no seu caminho outra pastora, mas de santolas, a Tita dos Pés Sujos.
- Ó Henrique, queres vir comer ao Arvoredo? – Perguntou.
O poeta voltou para trás e gritou:
- Ó pipi toma lá grão. Aí ó gaba lazão!
O Bill conseguiu resistir à tentação do diabo, que a maioria não conseguia, de juntar ao leite do convidado um copo de bagaço. Como forma de agradecimento o Henrique, não o Castanho, mas o da Rebelva, fez um estalinho com um indicador na boca e simulou dar um soco no comunista amigo. Estavam calmamente a comer uma torrada, quando entrou no café a Odete Estica e o marido que, ao ver o poeta, saudou-o com dois dedos em “v,” e o nariz no meio:
- Não vais ao cinema, tens as calças rotas!
As torradas voaram, uma côdea entrou com violência no decote da Branca de Neve, o Henrique, não o Castanho, mas o da Rebelva levantou-se com ódio, deu um grito profundo, “carau, carau”, seguido de uma cabeçada na parede, junto ao wc onde defecava descontraidamente o Ben-Hur, caiu assustado com o cagalhão a meia-haste, que se partiu em dois, um rebolou para trás da porta e o outro ficou espalmado numa nádega. Mais tarde a parte intacta iria colar a porta à parede quando do fecho do estabelecimento comercial durante a ronda do Manel Coxo. Mal ele sabia que no outro cagatório a cena se repetiria, não com uma metade, mas sim com um chourição que o Focas fizera questão de arrear naquele local.
- Outro!!?? – Gritou, desafiando todas as razoabilidades.
O café “Arvoredo” arriscava-se a fazer frente ao Chalé da Merda! O ritual com o Manecas Marreco, que vendia a lotaria numa cadeira de rodas, era sempre respeitada: Os clientes após comprarem a fração, roçavam o bilhete na marreca para dar sorte. No Cineteatro de Paço de Arcos a tradição mantinha-se, a seguir a um filme indiano rodava sempre uma produção da propaganda paçoarcoense, desta vez com o título “Alice no país das maravilhas”, que contava a estória do retornado Alice, o único que não fora desterrado para a Tapada do Mocho por ser o irmão adotado do Jorginho, e que trouxera um caixote de África, não com móveis, mas carregadinho de erva, cujo produto mudou para sempre a maravilhosa vila-Estado de Paço de Arcos, despertando para a vida muitos adolescentes promissores: Tubarão, Pingalim, Balatuca, Taka Takata, Grilo, Janeca, Ponto de Interrogação, que fundaram os “Vencidos da Erva”, e declararam o Céu de Paço de Arcos o mais alto da Costa do Estoril. Junto com o Alice contracenava o Chapeleiro Louco, um fabuloso desempenho do Chora na Penca, a que se seguia a Rainha da Copa, com a inesquecível Tita dos Pés Sujos na cozinha do pai Xantola. Havia quem dissesse que o Alice era a reencarnação do Desejado, um maluco da vila chamado Sebastião que um dia resolvera ir dar porrada aos queques da avenida de Roma e não voltara, criando o mito de que só regressaria numa noite de nevoeiro na Praia Velha. Por isso muitos passaram a alimentar-se somente de sumo de uva e erva do Alice. Mas o único que chorava sempre de cada vez que via a peça era o Milhas!