3ª Temporada - Vestígios Biológicos (28)
Comandante Guélas
28
A República Independente do Alto de Paço de Arcos cheirava a cultura, em qualquer lugar havia vestígios genéticos daqueles que um dia juraram fidelidade ao Comandante Guélas, o Querido Líder desta Vila-Estado. No largo da estação, mais precisamente nas ruínas do primeiro Centro Comercial da Costa do Estoril, o Áries, ainda se sente, nas noites de Lua Nova, o clarão dos flatos, que iluminavam de espanto a penumbra, prenúncio de que o Focas estava a parir num dos cantos um dos formosos cagalhões que o tornaram célebre, e que selaram as mais fundas e leais amizades guélianas. Foi ele que cometeu o primeiro crime, não de sangue, do jovem país, mas de merda, ou ambiental como se diz hoje em dia, quando o Zé do Carula abriu a porta da casa de banho do seu café, e esta ficou colada à parede por causa do cagalhão monstruoso que o Focas fizera atrás da porta. Confidenciou ao padre, que casou o irmão Sarapito pela 40ª vez, que em pequenino tinha um monstro dentro de si, na tripa, e que após a vitória do Comandante Guélas resolvera soltá-lo, e este tomou-lhe conta do intestino e nunca mais parou de fabricar troncos majestosos. Outrora no sítio de Paço de Arcos onde hoje em dia existe o “Elefante Azul” desenrolou-se uma cena digna de Faroeste, contada nos livros de História da Vila-Estado, em que os protagonistas foram dois paçoarcoenses de gema, o Choné e o Dic, este último o único Ser Humano do planeta a ter o mesmo nome que o seu cão, não por o ter dado ao canídeo, mas sim recebido. O destino pôs-lhes uma égua no caminho, em vez dos caracóis que andavam à procura, e as hormonas do Choné estoiraram:
- Vou montá-la!
O Dic humano controlou-se, já tinha passado por aquilo e deixara marcas no Dic canídeo, o nariz dividido em dois! O Choné tentou montar pela direita, mas ela respondeu-lhe com vários coices, parecia a Tita dos Pés Sujos. Entrou pela esquerda e só teve tempo para uma rapidinha, um galope diagonal pelo campo de trigo, pois os gritos da égua chamaram a atenção do dono que veio de forquilha na mão a gritar:
- Essa é minha, e nem o meu primo Conan Vargas tem autorização para montá-la!
A leitaria do senhor Manuel, que servia meio-gordo em taças, era um local excecional, mas inconveniente. A Fonte da Avenida representava um local de culto, dizia a lenda que a formosa Tita dos Pés Sujos costumava cortar as unhas dos pés e atirá-las para a água que, com o passar do tempo, se tornou um local de desejos. Na Casa das Pedras, junto à marginal lá para os lados de São Pedro do Estoril, que foi mandada construir em 1904 pelo comandante e capitão-de-fragata Manuel de Azevedo Gomes, da família do sargento-de-Boia paçoarcoense Horta, que numa festa na casa da Káti, uma figura arredondada, de cabeça de ovo, com uma sugestiva boca muito grande, foi torturado pelo impiedoso Zé Pincél, que o acusou de blasfemar contra o tamanho das mamas da dona da casa, que iria ser futuramente sua namorada, depois do Peidão lhe ter trincado os lábios no seu primeiro linguado, foi onde o Janeca e o Taka Takata juraram ter visto, após um charro comprado ao Grilo, o fantasma do primo do João da Quinta, dividido em dois pelo rápido de Lisboa, e mijado nas calças, despejando para sempre os seus ADN naquele espaço.
- Mas o cu e as pernas estavam na casa do Dr. Cebola, o castelo que fica do lado do mar para os lados de São João do Estoril – contou mais tarde o maior traficante de droga da vila. – É a prova de que a minha erva é a melhor da Costa do Estoril.
As relações entre o Torpedo e o Pitrongas foram sempre muito conflituosas. Mesmo depois do primeiro ter tido um ataque cardíaco enquanto bebia água na sarjeta. O segundo insistia em subir a rua José Ferrão Castelo Branco em vez de ir dar a volta por Caxias. A teimosia era tanta, que teimava em vir sempre a cavalo da sua Honda 50 de cor preta, desenhada para gente normal e não para um flamingo de um só neurónio. E o mais grave era que o barulho do escape apanhava sempre o Torpedo em sono profundo, um canídeo com um acordar difícil. Nestas ocasiões encaminhava-se estremunhado para o passeio, agachava-se e esperava pela ave rara.
Taka Taka Taka
Roncava a dita do Pitrongas, que atingia a vertiginosa marca de 30 Km/h. Mas havia um problema. O canídeo chegava aos cinquenta, fruto de muitos treinos durante as fugas ao motorista da quinta ao lado, o senhor Manuel, quando cinco dos seus dez donos resolviam encher a porta da Sesaltina de lixo e carregar na campainha.
Taka Taka Taka Taka
O escape parecia agora uma charanga, sinal de que o Pitrongas estava perto da curva, já com o pisca direito ligado, que indicava ir dar uma seca à tia. A simbiose mota/condutor dava o aspeto de um morcego e as pernas em abdução pareciam asas. Os ramos das árvores dobravam-se com a força do vento. O Torpedo absorveu um largo trago da sua baba, enquanto que na outra ponta da rua o pai do João da Quinta deu um gole no vinho carrascão, que era a única maneira que tinha para se manter vivo. Tudo se demorava, o barulho do escape do Pitrongas e o bater ansioso do coração do Torpedo, com a boca tingida pela raiva, e as lágrimas a escorrerem-lhe pelo focinho, fruto de um ódio de estimação. Até que uma sombra esguia, projetada pela luz do candeeiro da retaguarda, se estampou no passeio. Era o anúncio de mais uma noite estragada para o Pitrongas. Quando a mota e o flamingo se aproximaram da curva, não eram mais do que uma mancha escura que fazia lembrar um sapateiro viúvo com uma luz laranja, estilo pirilampo, a piscar para a direita. Os olhos do Torpedo concentraram-se na figura rabiscada do motorista. Nesta pequena curva, que tinha logo uma contracurva e um entroncamento no meio, havia naquele momento um conjunto de tensões. Quando o cheiro do Davidoff do Pitrongas chegou ao nariz do rafeiro, os seus neurónios entraram em curto-circuito. Uma raiva profunda perpassou-lhe ao longo da coluna vertebral, eriçando-lhe os pelos, ao mesmo tempo que o intestino entrou em terríveis convulsões, cujo barulho era abafado pela charanga do Pitrongas. Foi a potência do escape do canídeo que o atirou, de boca aberta, de encontro ao tornozelo do costume, o esquerdo, e lhe arrancou, como já se tinha tornado hábito, parte da meia da marca “CD”.